Em 25/9/2024, o STF decidiu que os adeptos da religião Testemunhas de Jeová têm o direito de recusar tratamentomédico com transfusão de sangue. Decidiu também que o Estado deve oferecer procedimentos alternativos disponíveis no SUS e arcar com as despesas em outras localidades caso indisponível o tratamento no domicíio do paciente. Acrescentou que a recusa do paciente deve ser livre e informada e que não pode ser feita em nome dos fihos menores quando não houver tratamento alternativo eficaz e seguro. As teses de repercussão geral fixadas foram as seguintes:
(i) “Tema 952, no RE 979742: 1 – Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa; 2 – Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no SUS podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio; e, (ii)”Tema 1069, no RE 1212272: 1 – É permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, recusar-se a se submeter a tratamento de saúde por motivos religiosos. A recusa a tratamento de saúde por motivos religiosos é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive quando veiculada por meio de diretiva antecipada de vontade; 2 – É possível a realização de procedimento médico disponibilizado a todos pelo Sistema Único de Saúde, com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnico-científica de sucesso, anuência da equipe médica com a sua realização e decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente”.
Trata-se de tensão entre dois direitos fundamentais protegidos pelo texto constitucional. O direito à vida (art. 5º, caput) e o de não ser privado de direitos por motivo de crença religiosa (art. 5º, VIII). Essas antinomias entre princípios devem ser resolvidas pela ponderação. A ser feita através de princípios instrumentais de interpretação constitucional. No caso, são úteis os princípios da proporcionalidade, da unidade da constituição e da máxima efetividade. O STF, aplicando-os, buscou preservar simultaneamente o direito à vida e o de liberdade religiosa. Por isso, impôs ao Estado o dever de assegurar um tratamento alternativo a quem, por sua crença religiosa, não aceita a transfusão.
Num dos casos, o que originou o Tema 952, a União, o Estado do Amazonas e o Município de Manaus haviam sido condenados a bancar uma cirurgia de artroplastia total (substituição de uma articulação, como o joelho, por uma prótese) a ser feita em São Paulo porque ela não é oferecida no Amazonas sem a transfusão.
Estou entre os que acham que cada ser humano deve ser livre para decidir sobre suas crenças e sobre o seu destino. Inclusive em questões delicadas como o suicídio, a eutanásia, a doação de órgãos e o aborto. Tudo isso tem fundamento na dignidade humana (art. 1º, III, CF) da qual decorre a autonomia de cada ser humano para decidir sobre sua vida, saúde e corpo. O STF teve o cuidado de não permitir que os pais possam impedir o tratamento dos filhos menores. Logo, foi na direção certa ao permitir a recusa dos Testemunhas de Jeová.
Mas as duas decisões suscitam questionamentos. Ao assegurar a liberdade religiosa dos que recusam a transfusão, o STF obrigou o SUS a oferecer tratamento alternativo, inclusive em outra localidade. Impôs custos ao poder público. Se essas duas imposições forem excessivamente custosas, podem acarretar restrições ao oferecimento de outros serviços de saúde a outros pacientes. E aí surge a pergunta sobre como ficam osdireitos à vida e à saúde dos pacientes atingidos pela restrição de recursos decorrente dos gastos adicionais com o tratamento dos que se recusaram à intervenção menos custosa com transfusão.
Os Temas 952 e 1069, portanto, já nascem sob muitos questionamentos. Quem pode dar o consentimento informado num caso em que o paciente Testemunha de Jeová chegue desacordado numa unidade pronto-socorro, precise de cirurgia imediata e não exista tratamento alternativo? Como ficam os princípios da razoabilidade e da reserva do possível diante da imposição ao poder público de custos de tratamentos que podem ser elevadíssimos em outras localidades e com outras técnicas? Como ficam os direitos dos outros pacientes que podem deixar de receber outros tratamentos pelo esgotamento dos recursos disponíveis na rede pública de sua localidade?
Maurício Rands é advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford