Por Maurício Rands
Em tempos de polarização tóxica, vale prestar atenção nas reflexões de alguém que viveu no centro da cena internacional num dos tempos mais polarizados da história. Como secretário de estado dos EUA em plena Guerra Fria, Kissinger desenvolveu intuições sobre como superá-la. Às vésperas de completar 100 anos, titular de um Prêmio Nobel, acaba de avançar algumas delas para prevenir a escalada das tensões sino-americanas, em entrevista seminal dada à The Economist (“Henry Kissinger explains how to avoid world war three – 17/05). Mas é nas 528 páginas de seu monumental livro recém-publicado (Leadership – Six Studies in World Strategy, 2022) que ele nos sugere como deveriam se portar os atuais líderes. E o faz a partir do exame da conduta e das lições de alguns líderes mundiais dos quais ele privou da intimidade profissional e pessoal. Líderes que moldaram seus países e o mundo: Konrad Adenauer (Alemanha), Charles de Gaulle (França), Richard Nixon (EUA), Anwar Sadat (Egito), Lee Kuan Yew (Cingapura) e Margareth Thatcher (Reino-Unido). O autor merece ser criticado por tentar justificar atrocidades das quais o autor participou. Como o bombardeio do Cambodja. Mas suas reflexões podem ajudar os líderes e a opinião pública mundial a encontrar caminhos para o diálogo sem o qual essas tensões podem produzir muita destruição.
Konrad Adenauer foi o líder da reconstrução da Alemanha que superou o “Estatuto de Ocupação” imposto pelas potências vencedoras da 2ª Guerra e recuperou a soberania estatal alemã. Com uma “estratégia de humildade” conseguiu inserir a Alemanha na Aliança Atlântica com EUA e Europa, integrando a OTAN em status de igualdade com as outras nações. E, assim, preparou seu país para a reunificação e o papel essencial na gestação da União Europeia.
Charles de Gaulle, com uma “estratégia de vontade” liderou a Resistência Francesa. Sua visão profética e vontade inesgotável manteve a chama de uma França independente sob cujas bases emergiu um país com papel relevante na ordem do pós-guerra.
Richard Nixon foi o presidente que inaugurou as relações sino-americanas em plena Guerra Fria e implementou uma política externa baseada na busca de equilíbrio entre os atores. Implementou o que Kissinger denominou uma “estratégia de equiíbrio”.
Anwar Sadat foi um herói revolucionário do Egito na luta contra o domínio britânico. Apesar de suas convicções pan-arábicas, combinando estratégia militar com diplomacia, ele foi capaz de celebrar a paz com Israel mesmo depois da derrota na guerra de 1967. Praticou “uma estratégia de transcendência”.
Lee Kuan Yew foi o governante que transformou uma Cingapura atrasada num estado próspero e multiétnico. Onde de chineses, indianos e malásios vivem com com unidade. Por sua ênfase na educação, cumprimento da lei e eficácia, ajudou a desenvolver Cingapura através de uma “estratégia de excelência”.
Margareth Thatcher foi a intérprete de um Reino Unido deprimido pela crise econômica e perda do que antes fora um império global. Representou uma ruptura com um estado social que, todavia, não conseguia o dinamismo econômico que o pudesse sustentar. Sua determinação disruptiva foi resultado de uma “estratégia de convicção”. Aqui aparece mais uma vez a leniência analítica do autor que deixa de criticar o fundamentalismo de Thatcher que acabou por custar-lhe o cargo.
Na atuação de todos esses líderes, Kissinger destaca seus atributos de liderança que deveriam ser emulados pelos aspirantes a estadistas da atualidade. Refletindo sobre o papel do indivíduo na história, ele argumenta que um líder tem que ter a capacidade de análise realista da sua sociedade com base em sua história, costumes e capacidades. Deve saber balancear o conhecimento do passado com as intuições para o futuro. E, assim, formular objetivos e estratégias. E isso só se faz possível se o líder for capaz de inspirar os seus, a partir de forte habilidade comunicativa. A coragem e a determinação da liderança são essenciais para a escolha de uma estratégia e a perseverança na sua consecução.
Nesses seis líderes, ele identifica capacidades comuns: a de entender as circunstâncias; a de formular estratégias para lidar com o presente e moldar o futuro; a de mobilizar a sociedade por propósitos e a humildade de corrigir erros. Valendo-se das habilidades desses estadistas, Kissinger tem realçado o quanto elas vão ser necessárias para que a rivalidade entre EUA e China não degenere para a mútua destruição. As duas potências vão precisar de lideranças que saibam combinar a rivalidade estratégica com o objetivo da coexistência. Se elas tiverem a capacidade de transcender as circunstâncias com visão e dedicação, quem sabe a geopolítica mundial possa encontrar alguma situação de equilíbrio que não represente a mútua destruição.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford