Com cerca de 1,1 milhão de casos de Covid-19 e mais de 27 mil mortes, números que têm subido rapidamente, a África se tornou um novo ponto da tensão geopolítica entre China e EUA em razão da pandemia.
A imagem de que o continente dá respaldo incondicional ao regime comunista ganhou reforço no final de julho, com a assinatura de um protocolo para a construção da sede do Centro de Controle de Doenças da União Africana (CDC, na sigla em inglês).
O prédio de 40 mil metros quadrados, em Adis Abeba, capital da Etiópia, ao custo inicial de US$ 80 milhões (R$ 449 milhões), será bancado pelos chineses, com a justificativa de auxiliar no combate a epidemias no continente.
“O novo CDC terá um papel fundamental na luta contra a pandemia na África. A China continuará a fazer tudo o que puder para apoiar a resposta africana ao vírus”, disse o líder chinês, Xi Jinping, que sediou em junho uma reunião de cúpula com os africanos para debater o combate à doença.
O projeto foi anunciado em 2017, como decorrência da crise do ebola, mas a construção de uma sede central só ganhou impulso com a Covid-19.
Após um começo em que parecia que pouparia a África, a doença começou a se alastrar em junho, especialmente nos países mais populosos, como África do Sul e Nigéria.
Como resultado, houve uma nova onda de medidas restritivas, como “lockdown” e proibição de venda de bebidas alcoólicas, parte delas já revogadas.
A iniciativa de construir o CDC desagradou o governo de Donald Trump, que se mostrou surpreendido. Um diplomata americano não identificado disse ao jornal britânico Financial Times que a China atropelou pactos de cooperação existentes entre EUA e África na área de saúde e decidiu “do nada” bancar o prédio.
Segundo essa autoridade, se os chineses construírem a sede, os EUA cortarão toda a cooperação técnica com o CDC.
A insatisfação americana com a China, como ocorre com frequência, vem embalada em acusações de espionagem. O receio, ao menos oficialmente, é que o prédio seja usado como uma espécie de central chinesa para grampear autoridades de diversos países.
Em 2018, uma reportagem do jornal francês Le Monde, com base em fontes anônimas, afirmou que a sede da União Africana, também construída pelos chineses na capital da Etiópia, havia sido grampeada, e que o material estaria abastecendo os serviços de inteligência de Pequim. Os chineses chamaram as acusações de “ridículas”.
Professor de economia da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, Carlos Lopes diz que a parceria entre a China e a União Africana se solidificou durante a pandemia porque os asiáticos estão interessados em forjar uma relação com o continente que vá além dos grandes projetos em infraestrutura e exportação de matérias-primas. Houve doação de máscaras, equipamentos de proteção, ventiladores e leitos de UTI para praticamente todos os países.
“Nos últimos três anos, a China apresentou uma certa inflexão na sua posição sobre a África. Os chineses querem diversificar sua presença”, afirma Lopes, que nascido em Guiné-Bissau e ocupa o cargo de representante da União Africana para Parcerias com a Europa.
A tentativa de ampliar o escopo da relação passa por parcerias na área da saúde, o que já vinha ocorrendo mesmo antes da pandemia.
Inclui, por exemplo, o apoio chinês ao diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, o etíope Tedros Adhanom. Não por acaso, a OMS entrou na linha de tiro de Trump durante a pandemia.
Segundo Lopes, os africanos, ao se alinharem aos chineses, estão pensando em seus interesses. “Os africanos querem competição entre os diferentes parceiros. Se os americanos estão muito chateados que a China está influente, basta aumentar seus investimentos no continente”, diz.
O problema, segundo Lopes, é que os EUA têm se concentrado em áreas que atendem diretamente a suas prioridades, como investimentos em combustíveis fosseis e segurança, o que é insuficiente para os africanos.
Além disso, os EUA têm resistência a lidar com a União Africana, que representa 54 países, em áreas como comércio. “Os americanos são contra uma zona de livre comércio negociada em bloco, preferem manter seus acordos bilaterais”, diz o professor.
Com Trump enfrentando uma reeleição complicada, as críticas à China se tornaram parte central de sua campanha. Os principais fronts são comércio e acusações de espionagem.
Pesquisador do Centro para Estudos Africanos e Chineses da Universidade de Johannesburgo, Charles Matseke afirma que a China está aproveitando a atual crise para mudar sua imagem no continente.
“É uma grande oportunidade para a diplomacia chinesa quando, por exemplo, constrói hospitais em países pobres da África. Algumas autoridades chinesas chegam a dizer que esse é seu Plano Marshall para os africanos”, afirma.
O aumento dos laços políticos entre as duas partes, segundo ele, é uma decorrência natural de uma relação econômica que cresceu muito. “Atualmente, mais de 70% de todo o comércio africano é com a China. Evidentemente, uma coisa leva à outra”, diz Matseke.
Folhapress