Pensei que fosse montagem, diz Caiado sobre pronunciamento de Bolsonaro

Horas depois de anunciar um rompimento com Jair Bolsonaro, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, 70, (DEM), afirmou à reportagem que o presidente da República perdeu as condições de liderar o enfrentamento à crise do coronavírus.

Caiado, que é médico, disse ter pensado ser “uma montagem” o pronunciamento de Bolsonaro na TV na noite de terça-feira (24), em que o presidente voltou a minimizar o risco do vírus e atacou a restrição ao funcionamento de atividades econômicas.

“Minha indignação é ele tratar de um assunto do qual ele não tem o menor conhecimento. Não se assessorou de ninguém para produzir um texto tão irresponsável”, declarou o governador.

O político goiano, que impôs limitações ao comércio no estado para amenizar os efeitos do vírus, criticou o risco econômico como argumento para flexibilizar essas medidas.

“Ele deve ter sido contaminado por algum empresário que só enxerga cifrão”, afirmou.

“Está mais preocupado com CNPJ do que com CPF.”
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Pergunta – Como avalia o comportamento do presidente na crise?

Ronaldo Caiado – Minha indignação é ele tratar de um assunto do qual ele não tem o menor conhecimento. Não se assessorou de ninguém para produzir um texto tão irresponsável e que provocou uma insegurança nas orientações de como o cidadão deve se comportar.

Ele deve ter sido contaminado por algum empresário que só enxerga cifrão. É uma situação que eu não vou admitir. Sou governador, tenho a prerrogativa de legislar sobre essa matéria. As decisões do presidente na área de saúde não interferem no estado de Goiás. Aqui, vamos continuar com o decreto que vale até dia 4 [de abril].

Quais seriam as consequências de uma redução dessas restrições?

RC – Aqui em Goiás, não vai ter muita consequência, porque o que vai ser colocado em prática são as decisões que eu vou decretar. Os goianos podem se sentir protegidos. As decisões na área de saúde serão tomadas por mim.

Seria um erro flexibilizar as regras agora?

RC – Na quarentena, o importante é que você vai calibrando. Você vê a chegada do vírus, a agressividade, o nível de contaminação e o percentual de pacientes internados por problemas respiratórios agudos. Eu não tenho como acertar com o coronavírus: “Olha, vamos fazer um acordo? Você faz isso aqui, e eu vou fazer aquilo”. As pessoas têm que parar de ser primárias nesse assunto. No dia 4, eu vou dizer qual é a situação e vou testar [possíveis flexibilizações].

Outros governadores já haviam manifestado insatisfação com o presidente. Seu discurso chama atenção porque era um aliado de primeira hora. O presidente perdeu condições de governar neste momento de crise?

RC – Para mim, nesta situação específica da saúde, totalmente. Eu vou me guiar por decisões que tomarei junto com a parte técnica do Ministério da Saúde, ouvindo a comunidade científica. Eu, como médico com 44 anos de formado, não posso admitir que um presidente da República vá prescrever cloroquina na porta do palácio. Isso é uma irresponsabilidade completa. Todo mundo sabe que não cura todos os casos e que as complicações são grandes.

Alguns políticos dizem acreditar que o presidente está esvaziado. Essa situação pode alimentar um processo de impeachment?

RC – Já vimos essa tese de impeachment logo no início do governo. O que eu espero é que ele reflita melhor, não se sinta dono da verdade e tenha humildade em ouvir as pessoas antes de tomar posições que podem constranger seus aliados, como eu fui até poucas horas.

Ouvir aquele depoimento dele em rede nacional foi algo constrangedor. Eu, de repente, tive que ouvir de alguns empresários: “E agora, eu cumpro sua ordem ou a ordem do presidente?”.

Ele já tem uma vida dentro da Câmara, um ano e dois meses de presidente. Precisa parar de fomentar essas crises. Toda crise provoca sequelas do ponto de vista econômico e de emprego. Para quê motivar um quadro que é frágil e não modular esse processo?
A equipe econômica até hoje tem atuado de uma forma totalmente distante da vida como ela é. Quando nada está dando certo, de repente a responsabilidade é da classe médica, do governador, de todo mundo, menos do presidente e do seu ministro?

O sr. disse pela manhã que o presidente coloca uma escolha entre as vidas e a sobrevivência econômica.

RC – O que eu vou dizer é que está mais preocupado com CNPJ do que com CPF.

O governador de São Paulo, João Doria, afirmou recentemente que se arrependia de ter votado em Bolsonaro. O sr. se arrepende?

RC – Eu sempre tive simpatia pela candidatura do Bolsonaro, apoiei em vários momentos muito delicados. Não tenho pé em duas canoas, sempre fui muito convicto das minhas posições. Todos desejamos que ele dê certo. Queremos que o Brasil saia da crise, mas, nesse momento especifico, talvez a maior crise desta geração, o comportamento dele realmente tem sido de sucessivas declarações malsucedidas e altamente prejudiciais à organização de uma estrutura para combater a virose.
Esse negócio de ficar arrependido… Chorar leite derramado não é muito meu estilo. Problemas existem, eu não sou perfeito, todos nós erramos, mas todo erro tem limite. Espero que a gente supere isso com o maior número de vidas salvas e, depois, possamos recuperar a economia. Porque não tem economia se nós tivermos um avanço continuado dessa doença, com centenas de milhares de óbitos no decorrer desse período.

O sr. disse que, a partir de agora, só tratará com o presidente por comunicados oficiais. Como fica a relação?

RC – Protocolar. De uma forma protocolar, o governador de Goiás conversará com o presidente da República.

O ministro Mandetta tem condições de conduzir a pasta de acordo com uma visão científica, dado o comportamento divergente do presidente?

RC – Meu respeito ao Mandetta é pelo preparo dele. Ele se dedica, tem preparo intelectual, tem conteúdo. Um governo tem que ser alicerçado por pessoas que têm esse nível. O presidente não vai decidir o que o Mandetta vai fazer. O Mandetta vai fazer o que sua formação e a sua conduta vão determinar que seja feito. Ele não vai prescindir da sua posição de médico para ter cargo.

Ele saberá tranquilamente tratar conosco do assunto e nós vamos saber calibrar isso. Tendo uma quarentena de 15 dias, para depois ir modulando, as pessoas que devem e as atividades que podem, por que isso é um colapso mundial? Onde está escrito? Essa ganância doida não tem lógica nesse momento.

O sr. já declarou mais de uma vez que o presidente lava as mãos para a crise.

RC – A responsabilidade de um presidente da República num momento tão delicado como esse é de minorar as crises. O que eu não posso é transferir a responsabilidade. Isso resolve algum problema? Eu não estou muito mais criando um meio de cultura para fomentar a desordem e a desobediência civil? Lógico que eu estou.

Essa tentativa de lavar as mãos é inaceitável para um governante, inadmissível. Você sabe quantos colegas médicos estão se contaminando, na frente de guerra, de repente ver o presidente da República falando que aquilo é uma gripezinha, um resfriado? Pô, cara, espera aí. Veja bem o desmerecimento.

O que o sr. pensou quando viu o pronunciamento do presidente, com essas expressões?

RC – Sinceramente, eu vi depois. Chegou a mim e eu pensei que fosse alguma montagem. Eu quis me certificar de que aquilo era realmente verdade. Eu refleti muito, analisei muito. Será que nós estamos errados? Será que ele tem alguma fonte, alguma base científica, algo que realmente sustente a tese dele? Ninguém tem hoje direito de fazer saúde na tese do achismo. Então você encerra todas as publicações científicas, desativa todos os centros acadêmicos, desrespeita todas as autoridades de cada área e vai ser o dono do mundo.

Pedro Augusto é jornalista e repórter do Jornal VANGUARDA.

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