‘Periferia vai padecer pela dificuldade de isolamento’, diz gestor de 15 hospitais do SUS

A chegada da pandemia do novo coronavírus à periferia de São Paulo, onde há maior densidade populacional e mais dificuldade de isolamento social, tem levado pacientes mais jovens infectados aos hospitais.

A percepção é do cirurgião Nacime Salomão Mansur, 63, superintendente da SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina), que administra 16 hospitais públicos no estado, além de outros serviços de saúde.

“A periferia vai padecer pela dificuldade de isolamento social. O doente chega ao hospital como ponto final no seu curso pelo sistema. Chega bem grave, direto para a intubação”, diz ele.

Até quarta-feira (13), os hospital da SPDM tinham 951 pacientes com Covid internados, 346 em UTIs. A taxa de ocupação dos leitos estava em 84%.

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Em ao menos três dos hospitais sob gestão da organização social ligada à Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), a ocupação das UTIs está acima 90%. São eles: Hospital Municipal de Parelheiros, Hospital Geral de Pedreira (ambos na zona sul) e Hospital Municipal de Barueri.

“Em colapso a gente ainda não entrou. Mas todo o sistema está bem mais pressionado”, diz o cirurgião. Do grupo, Parelheiros é o único com perceptiva de aumento de leitos de UTI, de 150 para 250. Mas há dificuldade para a compra de respiradores.

Segundo Nacime, uma possibilidade será a uso de ventilação não invasiva, que dispensa a intubação, em casos selecionados. Polêmica e não recomendada pela AMIB (Associação Medicina Intensiva Brasileira), essa opção traz mais riscos de disseminação do vírus no ambiente. Para o médico, porém, é possível adotá-la com segurança.

PERGUNTA – Como está hoje a ocupação dos hospitais sob gestão da SPDM?
NACIME MANSUR – Algum já entrou em colapso? Em colapso a gente ainda não entrou. Mas todo o sistema está bem mais pressionado. Estamos com uma taxa de ocupação média de 84%. Alguns hospitais, como os de Parelheiros, Pedreira e Barueri, estão mais pressionados, com ocupação acima de 90%.

Em Parelheiros, temos 150 leitos e estamos na expectativa de receber mais respiradores para ampliar para mais cem, totalizando 250. Está surgindo a possibilidade com ventiladores feitos no Brasil. Nos outros dois hospitais, não há perspectiva de expandir as UTIs. Estamos tentando trabalhar com a opção de evitar a intubação do doente, em casos selecionados.

P. – De que forma?
NM – Existem alguns trabalhos mostrando que a ventilação não-invasiva, o respirador sob pressão positiva, pode ter bons resultados, evitando a intubação. Se for isso possível, evita-se também um tempo de permanência muito maior.

P. – Mas na China essa ventilação ajudou a disseminar o vírus no ambiente, contaminou profissionais, e ela foi vetada. O que mudou?
NM – Tem que ter uma máscara especial para que não crie muitos aerossóis e haja disseminação do vírus. No início da pandemia, relatos de contaminação das equipes de saúde impediram a utilização [da técnica]. Mas agora alguns trabalhos mostram que é possível ter mais segurança. Com isso, teria o benefício da ventilação sem o malefício do riscos de disseminação do vírus.

P. – A SPDM estava com dificuldade de contratação de pessoal. Isso avançou?
NM – No Anhembi (hospital de campanha) e em Parelheiros, estamos mais equilibrados, conseguimos contratar, mas isso é muito dinâmico.

Você vai perdendo profissionais por afastamento ou porque resolvem sair mesmo e aí tem uma grande dificuldade de reposição. Temos 220 vagas abertas entre médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e fisioterapeutas.

A grande questão é treinar essas pessoas. Médicos e outros profissionais bem-preparados é uma dificuldade de se encontrar hoje no sistema [porque já estão contratados]. No caso dos técnicos de enfermagem, só 20% dos inscritos têm sido aprovados. E ainda assim é preciso treinar, capacitar em um curto espaço de tempo.

Você não tem tempo de maturar esse profissional para enfrentar essa doença. Não só a doença, mas a paramentação, a desparamentação, a gravidade desse doente que está em respirador. O técnico, o auxiliar tem que estar preparado para enfrentar essa situação.

A pandemia trouxe à tona a necessidade de um profissional de saúde mais bem formado, médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas. Não é qualquer fisioterapeuta, tem que ter afinidade com a questão respiratória, ventilatória. Tem muita escola, mas pouco profissional adequadamente preparado.

P. – A pandemia chegou às periferias. Qual o impacto disso aos hospitais?
NM – Estamos observando uma busca por pacientes de faixa etária menor. As consequências disso, por exemplo, são mais pessoas precisando de respirador e um aumento da taxa de mortalidade.

Tem muito jovem com comorbidades das mais variadas, como obesidade, hipertensão, diabetes. A periferia vai padecer pela dificuldade do isolamento social. Predominantemente, essa população mais jovem é a que não aderiu ao isolamento.

Estamos consolidando dados sobre o perfil desse doente, são informações difíceis de serem captadas. Em Parelheiros, por exemplo, o doente chega ao hospital como ponto final no seu curso pelo sistema. Ele foi atendido numa UPA, chega ao hospital bem grave, direto para a intubação.

O perfil desse paciente também tem impacto na mortalidade. O sistema privado pode ter pacientes mais velhos, mas as comorbidades são bem tratadas, eles são acompanhados. Os de um outro status financeiro estão relegados.

P. – O que mais o sr. teme neste momento?
NM – Essa expectativa se vamos superar ou não essa fase difícil, essa incerteza é muito ruim. Estamos trabalhando aqui em São Paulo com a ideia de que estamos muito próximos ao pico, se já não nele.

Se mantivermos esse atual nível de pressão, sem grandes explosões de demanda, acho que o sistema aguenta. Tem a questão econômica também. O setor privado já teve quebra de fluxo de caixa. Para o público, vamos sofrer no segundo semestre com o fato de que a queda na arrecadação do estado vai complicar os orçamentos, os contratos de gestão.

P. – Já existe um cálculo do custo dessa pandemia nas contas hospitalares?
NM – Estamos ainda numa situação muito instável para calcular isso. A gente está gastando muito com insumos e equipamentos, mas em algumas unidades já se percebe uma queda na pressão no pronto-socorro não-Covid.

Maio seria um momento em que, pela sazonalidade [tempo mais frio], já haveria muitas crianças nos pronto-socorros para atendimento pediátrico, inalação. Até agora, não houve isso. O isolamento social está ajudando muito nisso também.

P. – O que é possível aprender com essa crise?
NM – É uma tragédia social, humana. Essa pandemia alerta para a absurda concentração de renda neste país e para a necessidade de caminharmos para uma sociedade mais igualitária. As pessoas precisam ter minimamente uma casa. Como fazer isolamento social num barraco com dez pessoas?

O momento é muito rico de aprendizado também. As colaborações da sociedade civil com os governos, por meio de parcerias entre público e privado sem fins lucrativos, as doações, a mobilização social, isso tudo é muito rico. O estado só conseguiu expandir o sistema como expandia por conta dessas colaborações. A administração direta sozinha não conseguiria ter essa forças

Essa unidade entre os profissionais da saúde, as equipes multiprofissionais, isso tudo tem sido marcante. Temos também o aprendizado da cadeia logística. Ninguém mais vai ficar dependendo de só país para insumos [China, no caso]. Terei que ter mais estoque, não dá mais para ter estoque só por 15 dias, tem que ter estoque e segurança não só para EPIs [equipamentos de proteção individual]. Também temos que estar atentos à incorporação tecnológica, como a telemedicina e outros meios de comunicação.

Folhape

Pedro Augusto é jornalista e repórter do Jornal VANGUARDA.

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