Por LUIZ FLÁVIO GOMES
No decurso da Copa do Mundo recebi e conversei muito com alguns amigos estrangeiros. Eles estavam encantados com nosso país, com a hospitalidade, com a culinária, suas belezas naturais, suas cidades pujantes, estádios bonitos etc. Um deles, visivelmente o mais entusiasmado, dizia que o Brasil se converteria, em breve, em uma grande potência mundial, “na ciência e na tecnologia, na educação e na cidadania, no agronegócio e na indústria, na produtividade e na competividade etc.”
Fiquei me perguntando qual seria o milagre que iria transformar nosso país em um paraíso. É certo que não podemos negar as qualidades extraordinárias do Brasil, mas ao mesmo tempo sabemos que estamos mergulhados num caos profundo, sobretudo porque sempre fomos governados por pessoas que sempre pensaram mais nelas que nos interesses gerais.
Ponderei aos meus amigos que somos dois brasis (um com a proa voltada para a civilização e outro muito atrasado – Brasildinávia e Brasilquistão). Somos cordiais (agreguei), mas matamos 57 mil pessoas por ano; somos hospitaleiros, mas campeões do mundo em violência contra os professores; matamos 12 mulheres a cada 24 horas, 130 pessoas diariamente em acidentes de trânsito etc.
Ao meu interlocutor ainda sublinhei o seguinte: como pode o Brasil vir a ser uma potência mundial respeitada, se ele conta ainda com tanta violência (e a violência é sinal de atraso e de barbárie, não de evolução). Dei-lhe alguns números: em 1980, o Brasil era o quarto país mais violento do mundo, dentre 23 (só temos dados disponíveis de 23 países nesse ano). Em 1995, dentre 80 países, passamos para a sexta posição. Já em 2000, passamos a ser o sétimo mais violento do mundo, num total de 98 países: pouco avanço, devido ao aumento contínuo na taxa de mortes.
Em 2010, de acordo com levantamento realizado pelo Instituto Avante Brasil, o Brasil passou a ser o 20º país mais violento, dentre 187 países. Em 2012, nesse grupo, chegou ao 12º lugar. Em 2010, o Brasil foi responsável por 52.260 homicídios, ou uma taxa de 27,3 mortes para cada 100 mil habitantes; em 2012, apresentou um crescimento de 7,8% em números absolutos, registrando 56.337 mortes e uma taxa de 29 para cada grupo de 100 mil habitantes.
Com esses números, perguntei, como pode o Brasil se tornar uma potência mundial? Ele me respondeu:
“Há muita coisa para se fazer, porém, uma delas será absolutamente imprescindível, porque é a primeira de todas: reconhecer que a cultura do Ocidente está em franca decadência. Essa é a raiz de praticamente todos os problemas dos países ocidentais, que estão ameaçando concretamente o futuro das gerações vindouras; as pessoas estão perdidas e as instituições se encontram falidas. Tudo isso nos impede de viver uma vida plena e satisfatória. Algumas das nossas sociedades estão invertebradas. Outras são, desde a origem, invertebradas, sobretudo do ponto de vista moral e ético”.
Lamentavelmente, eu disse, o Brasil se encaixa no segundo grupo: somos um país invertebrado moralmente, desde o descobrimento (em 1500). Essa é a nossa peste invisível, que aqui se espalhou com a postura individualista e extrativista dos conquistadores, que transmitiram esse vírus maligno de geração em geração, corroendo de forma profunda a espinha dorsal que rege as relações humanas e sociais, afetadas até à raiz pela nossa forma de pensar, nossas opiniões, nossos juízos e nossos atos, pouco comprometidos com a vida saudável em sociedade.
Meu interlocutor concluiu: “O bloqueio ético que invadiu a cultura ocidental nos impede de pensar coletivamente. Cada um busca a satisfação exclusiva dos seus interesses, a realização dos seus desejos (cada um por si e ninguém pelo todo). Essa é uma cultura nitidamente alienante e decrépita, que altera nossa capacidade de raciocinar, assim como nossos sentidos e chega mesmo a destruir nossa própria identidade e nossas ideias, projetando-nos para um niilismo absoluto, onde reina a ausência de regras (anomia) e de autoridade, assim como de crenças coletivas e tradições”.
Antes que ele encerrasse seu discurso indaguei: “Vivemos ao sabor dos ventos, sendo indiferente para nós se eles sopram para a esquerda ou para a direita, para frente ou para trás, para o progresso/civilização ou para a barbárie?”.
Ele prosseguiu: “Nada mais atinge nossa sensibilidade, ainda que se trate de um ato extremamente cruel e desumano. Somos indiferentes à dor alheia, ao sofrimento dos demais. As sociedades invertebradas estão fulcradas na crença e no pensamento de que só se considera como realização pessoal a que se alcança mediante a satisfação dos desejos mais primários, das pulsões mais primitivas, que passaram a constituir o padrão de referência para valorar as consequências dos nossos atos.
O bem absoluto é a satisfação dos nossos interesses, pouco importando o que eles significam para o progresso ou retrocesso da comunidade, da ética e da moral. O bem supremo da vida é a realização do nosso desejo, dos nossos interesses, ainda que alcançados por meios aéticos e imorais, ainda que conquistados por formas tortas e deploráveis, com violação das frouxas e fluidas regras procedimentais. Trocamos a razão objetiva pela razão subjetiva, ou seja, pelo que manda a vontade de cada um, sem considerar que os humanos não vivemos isolados dos outros humanos”.
LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil.