ARTIGO — Por que somos alvo de gozação?

Carlos Lungarzo

Por que algumas potências estrangeiras nos consideram alvo de gozação? Afinal, nossos povos sobreviveram a 500 anos de exploração e racismo, incluindo os dois recentes séculos de neocolonização e rapina. Embora não conseguimos abolir a escravidão, pelo menos fomos capazes de não sermos totalmente aniquilados por ela. Se as potências imperialistas e mafiosas desprezam nossa condição de miseráveis, de não ser 100% brancos e de cultuar uma espécie de paganismo, pelos menos poderiam respeitar nossa resiliência.

Faço esta reflexão com base numa proposta feita pelo ministro da Justiça da Itália, Andrea Orlando, relativa ao caso Battisti. (abaixo, uma foto recente. Ele não usa sempre esse chapéu; só para seus admiradores sul-americanos).

Primeiro, vou fazer uma síntese biográfica. Figuras políticas como Orlando e também os ex-premiês Letta e Renzi, e o atual premiê Gentiloni pertencem ao chamado Partido Democrático (PD), que surgiu em 2007 como um amplo leque que incluía o autodenominado Partito Democrático Della Sinistra (PDS). O PDS, por sua vez, foi criado em 1991, como resultado final do vigésimo congresso do Partido Comunista Italiano (PCI) em 1991, quando se produziu uma grande divisão.

Fazendo um flashback:

O PCI havia sofrido importantes perdas de seus setores de esquerda desde 1978, quando se foi aproximando da centro direita e, posteriormente, da direita. Muitos de seus membros se transformaram em gruppettari, ou seja, membros de grupos antiburocráticos enraizados nas classes populares, alguns dos quais eram armados (como o grupo PAC, ao que pertenceu Battisti), mas outros se mantiveram na linha de ação social, humanitária e cultural desarmada.

Todos eles, porém, estavam incluídos no movimento chamado de maneira genérica Autonomia, e eram bem diferenciáveis das Brigadas Vermelhas, cujo objetivo era a toma do poder no estilo das guerrilhas da América Latina. É necessário enfatizar esta diferença, porque a propaganda da direita, a ambos os lados do Atlântico, confunde, de maneira inocente ou proposital, as Brigadas Vermelhas com os sistemas de autodefesa armada de alguns grupetti. Todos os grupos tinham em comum a luta contra o fascismo, a violência prisional, a exploração econômica e a discriminação sexista e racial.

Em 1991, quando se realizou o 20º congresso, o CPI conservava ainda uma minoria de esquerda, que recusou somar-se ao PDS e construiu o partido da Rifondazione Comunista. Durante algum tempo, porém, o PDS teve alguns quadros que conservaram certa identidade de esquerda, mas seus médios e altos dirigentes eram claramente pós-stalinistas e totalmente devotados à repressão da esquerda. Para eliminar essa ambiguidade, o PDS se desvencilhou de seu adjetivo (agora apenas metafórico) “della sinistra”, e em 2007, junto com os restos da direita democristã e com os neoliberais, gerou o novo Partido Democrático (PD).

Como em muitos outros países, na Itália existem militantes, intelectuais e políticos de esquerda, mas sua presença nas instituições é ínfima. A Sinistra Italiana, por exemplo, tem pouco mais de 2% dos senadores e dos deputados. Entretanto, em algumas regiões, como Nápoles, seus candidatos tiveram grande sucesso. Mesmo assim, o poder central na Itália está controlado totalmente por duas formas de direita.

1) Uma, a direita neofascista, vinculada com a Máfia, da qual o exemplo atual mais conhecido é Berlusconi.

2) Outra, uma direita moderna, com aspecto “democrático”, que seria equivalente aos “Tucanos”, os DEM ou o PMDB no Brasil.

Na Itália, esta direita é chamada de centro-esquerda, mas talvez seja correto considera-la levemente à esquerda dos fascistas. Enfim, é basicamente um problema de escala. O atual governo italiano pertence ao segundo estilo, e Andrea Orlando, o protagonista deste artigo, é seu ministro da Justiça.

Este ministro formulou uma oferta, para que, com toda pompa e circunstância, o vice-rei (perdão, quis dizer, o embaixador) italiano em Brasília, informe a Battisti de uma grande pechincha de seu governo:

v Orlando diz ter conseguido que a justiça aceite uma redução substantiva na pena de Battisti. Com efeito, é uma redução de duas prisões perpétuas para uma mísera pena de 30 anos de cadeia, ou seja, até os 93 anos da idade (se Battisti aceitar logo a oferta), a jovem idade em que a vida recomeça.

Eu sei que alguns não vão levar a sério, mas pensem, é uma oportunidade que nenhum supermercado faz. Consideremos as duas prisões perpétuas: (1) A primeira seria a partir de agora até a morte física de Battisti, ou seja, quando sua alma saia de seu corpo para adentrar-se no inferno. Bom, esta primeira condenação não tem nenhuma relevância, pois a vida humana é sempre muito curta. (2) A segunda é importante, e por isso os eminentes juízes o sentenciaram a duas. A segunda condenação abrange toda a eternidade.

Claro que estar eternamente no inferno não deve ser tão ruim, se compararmos com o tédio que deve ser estar no céu, ouvindo te deum e canto gregoriano, e vendo pombas voarem. Mas, se for condenado a prisão, Cesare perderia todas as diversões organizadas pelo diabo, que devem ser bem interessantes. Daí vem o ditado “como o diabo gosta”.

O sutil ministro propõe a seguinte barganha: reduzir a pena de infinitos anos por uma de apenas 30. Ou seja, o desconto é de w/30 = infinito. Ninguém faria um desconto deste tamanho!

Agora, a parte séria: será que temos caras de idiotas?

Bom, a Itália não pode pensar que Battisti seja idiota, mesmo que seja odiado até a medula por fascistas, stalinistas e mafiosos. Eles o perseguiram sem descanso durante 36 anos, e ele não só conseguiu fugir das numerosas arapucas (mais de dez), mas foi capaz de ganhar a simpatia de centenas de pessoas, e escrever mais de 20 livros.

Talvez os italianos pensem que todos nós somos idiotas, pois se ele mostrasse algum interesse por essa proposta, qualquer um de seus amigos o colocaria sob rigoroso tratamento psiquiátrico.

Pedro Augusto é jornalista e repórter do Jornal VANGUARDA.

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