Alper Tadeu Alves Pereira
“Chinês é tudo porco. Não é à toa que as doenças vêm de lá”, advertia um indivíduo em altos brados em uma mesa povoada de funcionários de alguma empresa de tecnologia com seus crachás à mostra. Não houve discordância, pelo contrário. Todos balançaram a cabeça efusivamente sincronizados com o noticiário que veiculava as últimas notícias da China. Imagens mudas, apenas com as legendas que enfatizavam o número de mortos e hospitalizados.
Algumas pessoas que saiam do restaurante também paravam diante da televisão com um ar de perplexidade, como se estivessem à beira do precipício. A tragédia humana, quando se transforma em show midiático, amplifica os pensamentos mais lúgubres, do tipo será que é dessa vez que eu vou embarcar?
Otto Friedrich tratou do tema de forma brilhante ao escrever O Fim do Mundo, no qual descreve as catástrofes que se abateram sobre a humanidade, desde os tempos bíblicos ao holocausto nuclear, cujo medo ancestral é ressuscitado a cada vez que os bárbaros forçam os portões e teme-se que as muralhas não resistam a cada tempestade, terremoto ou epidemia, seja a peste negra ou a Aids. (Editora Record, 2000)
Enquanto esperava na fila parta pagar a conta, já com certo mal-estar pelas reflexões, outros crachás com seus celulares a tiracolo chegavam para ocuparem as mesas recém esvaziadas, em uma dança ininterrupta e frenética. Naquele instante, quando o silêncio se tornou absurdo, da matilha uma voz de barítono ecoou: “os chineses só servem para fazer pastel e encher os camelôs de bugigangas”. Risadas generalizadas planando pelo salão.
Pronto! Uma epidemia que vem se espalhando, segundo os meios de comunicação, em progressão geométrica, transformou os chineses em inimigos públicos número 1. O bom selvagem ficou para trás, desde que Edgar Allan Poe nos mostrou com A Narrativa de Arthur Gordon Pym (Editora LP &M, 2002) a faceta sinistra dos nossos antípodas. É isso!
Como a maioria desconhece e jamais irá viajar pela Ásia, é preferível imaginar o modelo ancestral, em que milhares de bicicletas se espremem entre carros e ônibus, em uma verdadeira alegoria dos horrores. Essa é a visão, creio eu, que deve vigorar no imaginário coletivo. A escola de Maniqueu deu frutos!
Essas elucubrações foram interrompidas quando a moça do caixa insistia em me perguntar se era no crédito ou débito, embora eu fosse pagar em dinheiro. O meu celular recebeu uma mensagem. Os crachás resolveram sair na mesma hora, se acotovelando na fila, paralisada por mim, visto que não havia troco. Com o impasse resolvido ganhei as ruas, entrei em uma cafeteria para recuperar o fôlego a fim de retornar ao escritório.
Para minha surpresa, a mensagem que havia recebido era um alerta de um amigo meu sobre os últimos acontecimentos na China em primeira mão, pois o Governo estaria impedindo que a verdade fosse divulgada. “É para evitar pânico!”, alegava a narrativa, acompanhada de um vídeo no qual as pessoas, como em um filme do M. Night Shyamalan, sem qualquer motivação aparente, de súbito caiam no chão, como se fossem abatidas em um jogo de videogame.
Se eu fosse imprudente ou mecânico, trataria de imediatamente disparar as mensagens a todos aqueles que eu reputasse importantes para compartilhar o fim do mundo. Mas antes de disparar o gatilho, preferi fazer uma busca rápida na internet. E voilá! O vídeo era uma farsa e não guardava nenhuma relação com o vírus demoníaco.
Pedi ao amigo que me enviou que fizesse uma crítica antes de replicar mensagens de cunho apocalíptico. Ele resumiu com um emoji, gargalhando. Fiquei sem entender se ele estava reconhecendo o vacilo ou se escarnecia, porque o fim estava próximo, e eu era um incrédulo. O fato é que viajo para Ásia há mais de 20 anos e, ao longo desse tempo, pude acompanhar a evolução dos países, nos seus diversos aspectos, e a verdade é que estão a passos largos a caminho do século XXI, enquanto o nosso País estagnou.
O gigantismo da China é realmente impressionante, e os amigos chineses com quem mantenho contato me asseguraram que estão bem, e que a histeria coletiva é passageira. Não será dessa vez que o mundo irá acabar. A lucidez do diálogo com pessoas que nasceram e vivem lá me tranquilizou. Afinal, somos produtos do meio.
Lembro que em um encontro com chineses, sabedores da minha residência no Rio de Janeiro, queriam entender como bandidos sorriam impunementes nas favelas portando fuzis de última geração, e porque eu não tinha medo. Que eu saiba, não fizeram nenhuma piada com a minha origem e nacionalidade, atestando que o “brasileiro serve somente para o futebol, samba e caipirinha”.
No último gole de café, olhei ao redor para me certificar que todos estavam absortos em seus celulares, inclusive os atendentes. Sísifo está no meio de nós! Fui para o escritório a fim de ouvir Leonard Cohen cantar Everybody Knows.