No momento em que nosso planeta enfrenta desafios ambientais sem precedentes, vale a pena revisitar a contribuição significativa do Papa Francisco para o pensamento ecológico global. Há quase uma década, em 24 de maio de 2015, o mundo testemunhou a publicação da Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum. Mais recentemente, em 4 de outubro de 2023, o Pontífice complementou essa visão com a exortação apostólica Laudate Deum, centrada especificamente na crise climática.
Estes documentos transcenderam fronteiras religiosas, mobilizando milhares de pessoas comprometidas com a causa ambiental em todo o planeta. Seu impacto ultrapassa o momento presente e certamente será lembrado nas próximas gerações. Francisco assumiu com coragem o papel de líder religioso ecologista quando a humanidade mais precisava.
Esses textos representam o legado ambiental tangível do Papa, funcionando como uma antologia que amplifica vozes diversas: cientistas, filósofos, organizações sociais de diferentes regiões (especialmente das mais vulneráveis) e teólogos de várias partes do mundo. Esta compilação reúne informações, dados e denúncias que já vinham sendo apresentados há tempos. A tradição religiosa, naturalmente, deixou sua marca, reencantando a mensagem com sua linguagem própria.
Em meio a tanto negacionismo, desumanização e crescente crueldade, não seria inspirador encontrar um registro poético em suas mais diversas manifestações para criar e sustentar um futuro viável?
Francisco introduziu o conceito de ecologia integral, uma abordagem que constrói pontes entre diferentes disciplinas e nos conecta por intermédio de laços de afeto com todas as criaturas. O Papa convida à radicalidade na Encíclica, que consiste em renunciar à transformação da realidade em mero objeto de uso e dominação. Afinal, que tipo de afeto podemos desenvolver se apenas usamos e dominamos?
Os resultados dessa combinação entre objetificação e domínio estão evidentes hoje, e Francisco não hesitou em enumerá-los de forma convincente e bem documentada. Poluição, lixo e cultura do descarte transformaram a Terra em um imenso depósito de imundície. As mudanças climáticas representam um problema global com dimensões ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas, impactando desproporcionalmente os países em desenvolvimento.
Esgotam-se as reservas de água e extinguem-se cada vez mais espécies: todos os anos, milhares de espécies vegetais e animais desaparecem para sempre, privando nossas futuras gerações de conhecê-las. Nossa qualidade de vida deteriora-se rapidamente enquanto a desigualdade planetária se intensifica, sem que haja consciência clara dos problemas que afetam particularmente os excluídos – a maior parte do planeta, bilhões de pessoas. O Papa afirmou que não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, integrando a justiça nas discussões sobre o meio ambiente para ouvir tanto o clamor da Terra quanto o clamor dos pobres.
Esta última afirmação talvez seja o resumo mais fiel da proposta central do Papa Francisco feita há uma década na Encíclica, junto com a denúncia sobre a inação daqueles que deveriam assumir e orientar transformações radicais.
Desde a publicação da Encíclica, quase uma década se passou, e o negacionismo climático avançou rapidamente. Francisco voltou a adotar uma posição clara e necessária como líder religioso. Em sua exortação de 2023, afirmou que por mais que se tente negar, esconder, dissimular ou relativizar, os sinais das mudanças climáticas estão aí, cada vez mais evidentes. Ninguém pode ignorar que nos últimos anos testemunhamos fenômenos extremos, períodos frequentes de calor incomum, seca e outros lamentos da Terra que são apenas algumas expressões palpáveis de uma doença silenciosa que afeta a todos nós.
Sua voz enfrenta diretamente aqueles que zombam, ridicularizam e confundem sobre um tema cada vez mais evidente e cientificamente documentado – de fato, no texto cita expressamente o IPCC – e argumenta que já não se pode duvidar da origem antropogênica das mudanças climáticas.
Mais uma vez, o Papa conseguiu. Esta recente exortação também interpelou o movimento ecologista que compreende claramente a existência de um problema estrutural envolvendo desigualdades globais e exigindo ações urgentes daqueles que detêm o verdadeiro poder de decisão.
Hoje esse episódio ganha novo significado, podendo ser visto como um retrato daqueles pequenos momentos que devemos cultivar para manter viva a memória e honrar o legado de quem soube dizer o necessário sem desculpas nem indiferença.
Marcelo Rodrigues, é advogado especialista em direito ambiental e urbanístico, consultor técnico em sustentabilidade da Prefeitura Municipal de Caruaru, ex-Secretário de Meio Ambiente do Recife.