Uma das principais ferramentas usadas na comunicação, organização e convocação dos atos golpistas do 8 de janeiro, o aplicativo Telegram segue sendo um espaço livre para a difusão de notícias falsas e discursos antidemocráticos. Com o potencial de reunir criminosos e aliciar incautos, a ferramenta, assim como seus similares, não tem regulação pública, sendo um desafio ao combate do extremismo e ao discurso de intolerância e ódio.
A plataforma que segue na mira da Justiça, pagou na última semana uma multa de R$ 1,2 milhão aplicada pelo descumprimento de uma decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinava o bloqueio do canal do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), no âmbito do inquérito dos ataques terroristas.
A organização da tentativa de golpe pode ser acompanhada nas centenas de grupos extremistas presentes no app. Geralmente fazendo uso de frases de efeito e informações falsas, postagens nesses grupos incluem frases motivacionais, como “Não precipitar, não retroceder”, até mensagens religiosas que equiparam a disputa política a uma guerra santa do bem contra o mal.
Para o especialista em direito digital, regulação de serviços digitais e proteção de dados, Ricardo Campos, docente na faculdade de direito da Goethe Universität, na Alemanha, um dos aspectos preocupantes do Telegram é ele se tornar, cada vez mais, uma fonte primária de informação. Outro aspecto apontado por ele é a forma de funcionamento do aplicativo, em que as informações não seguem em um fluxo único. “Existe uma multidão de fluxos de informação separados, não havendo algoritmos para tornarem os posts populares mais proeminentes. Dessa forma, o trabalho de combate à desinformação no Telegram é diferente daquele que ocorre, por exemplo, no YouTube ou Facebook”, ponderou o professor.
“Poderíamos dizer que é um trabalho de formiga, que visa derrubar grupo por grupo, canal por canal, membro por membro”, avaliou Campos quanto à dificuldade do monitoramento nessa plataforma.
Ordens judiciais
Dentre os diversos grupos golpistas acompanhados pela reportagem nas últimas semanas, alguns com mais de 80 mil participantes, mesmo nas suas diferentes configurações, todos apresentam estratégias semelhantes para evitar o bloqueio pela Justiça. Circulam nessas comunidades, com alguma frequência, mensagens que tentam antecipar as ordens judiciais de bloqueio. Isso dá início a um movimento de despiste, na tentativa de evitar as decisões, em que os canais fazem a alteração do nome identificador do grupo ou migram os participantes para um outro canal dentro da aplicação.
O jogo de “gato e rato” faz com que, mesmo com a colaboração da plataforma, as decisões judiciais tenham pouco impacto nesse “ecossistema” da rede golpista no aplicativo. Para Campos, sem regulação, a remoção do conteúdo criminoso depende muito da “boa vontade” da empresa na elaboração das suas políticas de uso. O WhatsApp deu um exemplo do tipo ao adotar uma limitação, ainda que genérica, do alcance dessas mensagens enviadas. A medida não solucionou o problema, mas reduziu o alcance nessa plataforma da disseminação de notícias falsas. O especialista também lembrou que, na ausência da cooperação, “caberá ao Judiciário e às investigações realizadas pela polícia judiciária e pelas denúncias recebidas determinar a suspensão ou bloqueio de perfis”.
Discussão global
A regulação das redes e a responsabilização solidária das plataformas pelos conteúdos veiculados é um debate que vem sendo realizado em várias partes do mundo, como destacou ao Correio o ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República, Paulo Pimenta. “Existe um debate em curso sobre a questão das plataformas, dos conteúdos que são veiculados nas redes. É um processo que está avançado, não só no Brasil, é um debate da comunidade europeia, dos Estados Unidos. O mundo caminha para um processo de regulação, ou digamos assim, de corresponsabilização”, explicou o ministro.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva também apontou que pretende conversar com Joe Biden, em viagem aos Estados Unidos, sobre o tema. “Eu acho que a única forma de ter uma regulação é sendo mundial. Não dá para fazer uma regulação apenas no país”, argumentou o petista em entrevista a uma emissora de TV na última semana.
Projeto de lei
Já o presidente reeleito da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), disse, em coletiva, ser necessário aplicar regras para as plataformas. Para isso, ele deve retomar a análise de um projeto de lei que trata do tema e que tramita na Casa. “A polarização entre liberdade de expressão e proteção de plataformas e a polarização eleitoral não permitiram que o projeto fosse votado. E, naquele momento, eu dizia que muitos iriam pagar pela falta de uma legislação clara a respeito da regulação das redes”, destacou o parlamentar.
A discussão gera preocupações quanto à liberdade de expressão, argumento endossado pelas plataformas, que temem por uma responsabilização solidária e defendem que essa medida forçaria que as empresas adotassem políticas mais restritivas, fazendo com os conteúdos sensíveis migrassem para sites e plataformas hospedados em países com regras mais permissivas, longe de qualquer controle ou regulação. Para o professor Campos, o argumento é falso. “É importante termos em mente que dificilmente um blog ou um site independente teria o mesmo alcance que uma publicação realizada em uma rede social ou aplicativo com milhões de usuários”, garante.
“É difícil vislumbrar uma solução a longo prazo que não implique em um monitoramento constante do governo sobre cada passo dos cidadãos envolvidos nos movimentos e atos golpistas, de modo que é seguro afirmar que essa tarefa, a de combater tanto a desinformação, quanto movimentos antidemocráticos, perdurará pelos próximos anos e demandará um esforço criativo, possivelmente legal e institucional, por parte do Estado”, prevê o especialista, que entende a regulação como positiva. “Na prática, vemos que uma maior regulamentação geraria maior segurança jurídica e seria, portanto, mais benéfica para a sociedade como um todo”, conclui o professor.
A reportagem tentou ouvir o advogado Alan Campos Elias Thomaz, representante do Telegram no Brasil, mas obteve como resposta que “não comentamos assuntos envolvendo clientes”. Thomaz foi o representante da plataforma quando ela firmou um entendimento com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que foi válido até 31 de dezembro, e buscou dar agilidade no combate à desinformação no período eleitoral.
Correio Braziliense