Por Maurício Rands*
A situação jurídica de Bolsonaro, Anderson Torres e outros do seu círculo, inclusive os seus generais palacianos, ficou mais difícil depois dos atentados golpistas. A minuta do golpe complicou-os ainda mais. É fácil acreditar que Anderson Torres, em cuja residência foi encontrada a minuta golpista, redigiu-a (ou recebeu de alguém) sem ser para atender articulação que envolvia o seu chefe então presidente? No mínimo fica forte a suposição de que o ex-presidente levou a sério a possibilidade de tentar uma manobra golpista para impedir a posse de Lula. Isso explicaria seu silêncio ambíguo, seu estímulo indireto aos acampamentos nos quartéis, e sua recusa a reconhecer a derrota.
O decreto visava dar forma jurídica a um golpe. Pode ter sido parte de um projeto contemplado já a partir do dia seguinte à derrota eleitoral. E que pode ter tido a participação de altas autoridades das FFAA. Hipótese que foi reforçada pela omissão e cumplicidade de alguns membros do Batalhão da Guarda Presidencial do Exército, inclusive de seu comandante, na invasão do Palácio do Planalto posteriormente efetivada.
O roteiro golpista pode ter sido articulado em dois momentos. O primeiro foi desvelado pela minuta de decreto. As investigações em curso no STF precisam revelar a cadeia de responsáveis pela sua elaboração. Acreditar ter havido uma mera sugestão de um eleitor fanático inconformado com a derrota seria o mesmo que acreditar que o Náutico vai ser campeão mundial. Seu texto previa a assinatura do então presidente. Visava intervir na Justiça Eleitoral, através de uma “Comissão de Regularidade Eleitoral” chefiada pelo ministro da Defesa, para anular os resultados do 2º turno. Referia-se à diplomação do presidente utilizando o verbo no passado.
Como a diplomação ocorreu em 12 de dezembro, vê-se que o decreto seria publicado pelo presidente derrotado, entre a diplomação e a posse do novo presidente. Talvez por falta de consenso entre os militares do Alto Comando das Forças Armadas, o então presidente não viu as condições para publicar o decreto dos seus sonhos que, por um golpe, anularia a proclamação da vitória do seu opositor. Talvez também por falta de apoio internacional, inclusive porque o seu inspirador Trump perdera as eleições e já corria risco de prisão.
Passada essa “oportunidade”, o plano é alterado. O presidente viaja para Orlando (para onde coincidentemente depois também voou seu ex-ministro Anderson Torres, mesmo tendo sido nomeado secretário de segurança pública do DF). E dali, junto com os que aqui ficaram, articula-se a nova fase do roteiro golpista. O gado fanático acampado nos quartéis seria utilizado para ocupar a sede dos três Poderes. A mostrar que o caos tomara conta do país e que só poderia ser superado pela intervenção militar. Incitavam assim os militares a assumirem o poder por um golpe.
Por isso, todos os que invadiram os três palácios não cometerem apenas o crime de dano qualificado ao patrimônio público (art.163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal, cuja pena é de detenção de seis meses a três anos) e eventuais lesões corporais (art. 129 do CP). Ao tentar violentamente impedir o funcionamento das instituições democráticas, incorreram no crime do art. 359-L do CP (abolição violenta do estado democrático de direito), cuja pena é de reclusão de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência praticada. E, ao tentar derrubar o presidente eleito e então já empossado, incorreram no crime de tentativa de golpe de estado (art. 359-M do CP), cuja pena é de reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos. Além disso, também ficaram incursos nas penas do art. 286 do CP – o da incitação à prática de crimes ao clamarem e tentarem criar as condições para que os militares completassem o golpe iniciado. Essas penas todas devem ser somadas.
Com exceção dos que plantaram a bomba no caminhão para semear o terror no aeroporto de Brasília, esses golpistas não praticaram o crime de terror que está tipificado no art. 2º da Lei Antiterror (Lei nº 13.260/16): “O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.
Ficam faltando os dois elementos subjetivos do tipo penal do crime de terror ali definido; i) razões de xenofobia, etc; e, ii) finalidade de provocar terror social ou generalizado. Esses golpistas tentaram abolir o estado democrático e derrubar o governo eleito. Não visaram provocar “terror social”, nem agiram por razões de xenofobia, racismo, discriminação, etc. Por isso, tecnicamente, não são terroristas. Devem ser tratados como golpistas e vândalos, mas não como terroristas. Deve-se acusá-los e puni-los pelos crimes que eles cometeram. Que são graves e não foram poucos. Mas imputar-lhes um crime que não cometeram só vai vitimizá-los.
*Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford