Não há dúvida que a lei 11.101/05, que regula a Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falências, foi um avanço muito significativo em relação à sistemática anterior, quando o arcaico DL 7.661/45 tratava das Falência e Concordatas.
A lei 11.101/2005 (LRF) inseriu o Brasil entre os países que adotaram legislações falimentares mais modernas que permitem maior participação dos credores tanto na tentativa de recuperar empresas em crise como no âmbito falimentar.
O processo legislativo que culminou com a promulgação da lei de 2005 foi longo e demorado. As discussões se iniciaram em 1991, sendo que o projeto de lei tramitou por quase quatorze anos no Congresso Nacional. Somente em 9 de fevereiro de 2005 foi publicada da lei 11.101/05.
Entretanto, após mais de quinze anos de vigência, a LRF já começava a dar sinais de que alguns pontos necessitavam atualizações.
Felizmente, dessa vez o processo legislativo foi mais célere. As discussões para a reforma da LRF se iniciaram com um projeto de lei apresentado em 2018 pelo Governo de Michael Temer, por iniciativa do então ministro da Fazenda Henrique Meirelles, o PL 10.220/18.
Esse projeto apresentava diversos problemas, sendo que o principal deles era o aumento de poder do fisco de forma exacerbada. De qualquer forma, esse projeto teve o mérito de iniciar as discussões em torno na modernização da lei 11.101/05.
Nesse sentido, diversas entidades da sociedade civil se uniram para apresentar uma alternativa viável ao PL 10.220/2018. Inicialmente, foi criado um grupo de consenso composto por profissionais indicados por essas entidades¹, altamente especializados no tema. Posteriormente, esse Grupo de Consenso se auto denominou Grupo Permanente para o Aprimoramento da Insolvência – GPAI.
Essa forma de atuação da sociedade civil organizada se mostrou muito profícua. Assim, as discussões sobre as alterações na LRF eram realizadas inicialmente no âmbito desse grupo. Apenas o que era, de fato, consenso era encaminhado aos Deputados e Senadores. Isso permitiu que todas essas entidades remassem para o mesmo lado, no intuito de contribuir com o aprimoramento da legislação. Dessa maneira, as contribuições do Grupo já chegavam aos deputados com maior peso, pois eram subscritas pelas importantes entidades que o compunham.
O Deputado Hugo Leal, que foi o relator na Câmara, incorporou ao projeto diversos pontos levantados por esse Grupo no substitutivo que apresentou no final de 2019. O projeto tramitou sob número 6.229/05 na Câmara dos Deputados, pois os projetos mais novos, incluindo o substitutivo, foram todos apensado ao referido PL, que era o mais antigo.
Realmente, os resultados não teriam sido tão positivos se cada entidade tivesse atuado de forma isolada, muitas vezes com prioridades diferentes e, até mesmo, com pontos de vista opostos sobre determinados temas.
Efetivamente, a experiência nesse processo legislativo, mostrou que a atuação da sociedade civil de forma mais organizada foi de extrema importância para o aprimoramento da legislação.
Nesse clima de cooperação entre essas entidades e o Poder Legislativo, em 26/08/20, o projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado Federal.
No Senado, o projeto recebeu o número 4458/20, tendo sido designado relator o Senador Rodrigo Pacheco.
O mesmo Grupo continuou atuando de forma coesa, sendo que Senado Federal aprovou o projeto em 25/11/20. Em 24 de dezembro de 2020 houve a sanção Presidencial da Lei 14.112, com quatorze pontos vetados, entretanto.
Já no início de 2021, o Grupo elaborou Nota Técnica expondo motivos e pleiteando a derrubada dos vetos presidenciais. Finalmente, em 17 de março de 2021, doze, dos quatorze vetos Presidenciais foram derrubados pelo Congresso Nacional.
Pode-se dizer que esse processo legislativo que alterou a lei 11.101/05, foi relativamente rápido, pois as discussões se iniciaram em 2018 e, no final de 2020 foi promulgada a lei 14.112/20.
Essa Lei alterou a LRF, com o intuito de atualizar e modernizar a legislação falimentar brasileira. Alguns pontos também foram alterados para refletir a jurisprudência que já vinha sendo praticada por nossos tribunais.
Entre as alterações, podemos destacar algumas das mais relevantes.
I. Recuperação Judicial:
Regras mais claras para o período de suspensão das ações, stay period (art. 6º, inciso III);
Possibilidade de prorrogação do período de suspensão das ações por mais 180 dias (art. 6º, § 4º);
Novas regras para Recuperação Judicial dos Grupos Econômicos, estabelecendo critérios para consolidação processual e substancial (art. 69-G e 69-J);
Possibilidade de apresentação de Plano de Recuperação Judicial pelos credores em determinadas possibilidades (56, §6º);
Pagamento dos credores trabalhistas em prazo superior a um ano desde que o devedor apresente garantias (art. 54, § 2º);
Definição de voto abusivo, somente se for exercido para obter vantagem para si ou para outrem (art. 39, § 6º);
Melhor definição do conceito de Unidade Produtiva Isolada (UPI), com possibilidade de venda integral da empresa (art. 50, inc. XVIII);
Possibilidade de constatação prévia, exclusivamente para verificação das condições de funcionamento da devedora e regularidade da documentação (art. 51-A);
Regras para a concessão de novos financiamentos (art. 69-A a 69-F);
II. Administrador Judicial:
Novas atribuições ao Administrador Judicial como fiscalizar a veracidade das informações prestadas pelo devedor (art. 22, inc. II, ‘c’ e ‘h’), estimular a mediação e conciliação (art. 22, inc. I, ‘j’), assegurar boa-fé nas negociações entre devedor e credores (art. 22, inc. II, ‘g’);
Após a decretação da falência apresentar, em 60 dias, plano para realização dos ativos (art. 99, § 3º);
Realizar a venda de todos os bens da massa falida no prazo máximo de 180 dias (art. 22, inc. III, ‘j’);
III. Recuperação Extrajudicial
Redução do quórum de aprovação de 60% para 50% (art. 163, caput);
Possibilidade de stay period da Recuperação Extrajudicial (art. 163, § 8º);
Possibilidade de inclusão do passivo trabalhista, mediante acordo coletivo (art. 161, § 1º);
Possibilidade de ajuizar da Recuperação Extrajudicial com adesão de credores que representem 1/3 dos créditos abrangidos, com prazo de 90 dias para atingir o percentual de 50% (art. 163, § 7º); e
Possibilidade de conversão da Recuperação Extrajudicial em Judicial (art. 163, § 7º);
IV. Recuperação Judicial do Produtor Rural
Recuperação Judicial do Produtor Rural sujeita os créditos decorrentes da atividade rural, desde regularmente contabilizados (art. 49, § 6º);
Não se sujeitam dívidas contraída nos três anos anteriores, desde que tenham sido contraídas com a finalidade de aquisição de propriedade rural (art. 49, § 9º);
V. Incentivo a Conciliação e Mediação
Possibilidade de conciliação e mediação antecedentes ou incidentais ao pedido de recuperação judicial, com suspensão das ações e execuções por até sessenta dias (art. 20-B, inc. IV, § 1º e art. 20-C);
Conciliação e mediação devem ser incentivadas em qualquer grau de jurisdição (art. 20-A).
VI. Tratamento do Passivo Fiscal
Possibilidade de transação e parcelamento em condições mais vantajosas (art. 10-A da lei 10.522/02);
Parcelamento em até 120 meses (art. 10-A, inc. V da lei 10.522/02);
Possibilidade de o fisco requerer a falência na hipótese de descumprimento de 6 parcelas consecutivas ou 9 parcelas alternadas (art. 10-A, §4º, inc. I da lei 10.522/02);
Liquidação de até 30% com créditos de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa de CSLL e o restante em 84 parcelas (art. 10-A, inc. VI da lei 10.552/02);
Ganho com a redução da dívida não será mais computado na base de cálculo de PIS-PASEP e COFINS (art. 50-A, inc. I);
Não se sujeita ao limite de 30% na apuração do imposto de renda e da CSLL (art. 50-A); e não se aplica o limite de 30% na apuração do imposto de renda e CSLL sobre a parcela do lucro líquido, decorrente do ganho de capital da alienação de bem ou direitos (art. 6-B).
VII. Falência
Vedação da extensão dos efeitos da falência, mas admitida a desconsideração da personalidade jurídica (art. 82-A);
Melhor definição da ordem de pagamento (arts. 83 e 84);
Encerramento sumário na hipótese de falência sem bens (art. 114-A);
Redução do prazo e antecipação do termo inicial para extinção das obrigações do falido (fresh start), nas seguintes hipóteses: i) com o pagamento de 25% dos créditos quirografários (art. 158, inc. II); ou ii) com o decurso do prazo de três anos, contados da decretação da falência (art. 158, inc. V); ou iii) com o encerramento da falência (art. 158, inc. VI).
De modo geral, podemos concluir que lei 14.112/20 alterou a Lei de Recuperações Judiciais e Falências positivamente, fruto de trabalho conjunto da sociedade civil organizada e do Poder Legislativo. Portanto, a lição que fica desse processo legislativo é no sentido de que a sociedade civil, quando consegue se organizar de forma coesa, pode e deve contribuir com o aprimoramento da legislação, o que também é uma forma de exercício de cidadania.
1- Associação dos Advogados de São Paulo-AASP, Associação Comercial do Paraná-ACP, Instituto dos Advocados de São Paulo-IASP, Instituto Brasileiro de Direito de Empresa – IBDE, Instituto Brasileiro de Direito Empresarial-IBRADEMP, Instituto Brasileiro de Estudos de Recuperação de Empresa – IBR, Instituto do Direito de Recuperação de Empresa – IDRE, Instituto dos Advogados de Pernambuco-IAP, Turnaround Management Association Brasil – TMA Brasil, além das Comissões da OAB, Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará, Goiás, Santa Catarina, Mato Grosso, Paraná, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul.
Eduardo Foz Mange
Mestre em Direito Comercial, Especialista em Direito Empresarial e Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado, sócio do escritório Mange Advogados Associados. Conselheiro e Diretor da Associação dos Advogados de São Paulo-AASP.