“Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. Mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem cidadão. E é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário; lê e escreve; mora; tem hospital e remédio; e lazer quando descansa.”
A declaração de Ulysses Guimarães feita no início do discurso proferido por ele, então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, na cerimônia de promulgação da atual Constituição Federal sintetiza a essência da nova Carta que marcava um novo começo de um Brasil mais democrático e justo.
Há 33 anos, o texto constitucional entrava em vigor no país e instituia novas relações econômicas, políticas e sociais, como a implementação do Sistema único de Saúde (SUS) e a determinação de uma educação igualitária para todos; além da regulação da jornada de trabalho para oito horas diárias e a instituição das licenças maternidade, de 120 dias, e paternidade.
Das sete Constituições existentes no país desde a do Brasil Império, em 1824, a Carta de 1988 é a que mais traz direitos fundamentais. “Não só isso, ela também os coloca em um espaço de cláusula pétrea, ou seja, não pode ser alterada por emendas de forma a serem diminuídos, apenas podem ser aumentados”, conta Rodrigo Sartoti, mestre em direito.
Para ele, que é professor de direito constitucional da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a Constituição é o símbolo que representa o fim literal de qualquer resquício da ditadura militar, e, por isso, é tão relevante para o país. “Antes de 1988 o Brasil viveu mais de 20 anos de ditadura militar: o golpe civil militar de 1º de abril de 1964 se estende até 1985. Mas eu prefiro falar que o fim deste período foi em 5 de outubro de 1988 porque é o dia em que teve fim todo aparato legislativo da ditadura”, declara Rodrigo.
É por este motivo que ela carrega o ineditismo de novos direitos que criou uma nova forma de viver no país. Era consenso geral que o Brasil precisa sair do cenário de privação de liberdades individuais e limitação de direitos sociais e trabalhistas em que a ditadura o deixou.
Antes da Carta, o cidadão ainda era, mesmo após o fim do regime militar, considerado algo a ser controlado e não como um ser de direitos e deveres. “Tínhamos pouquíssima garantia de direitos sociais. Não tínhamos o SUS, apenas um sistema limitado a quem era inscrito na Previdência Social, por exemplo, ou a trabalhadores assalariados. O acesso à educação era muito limitado e não universal”, conta o professor.
Além disso, as jornadas de trabalho eram maiores e os funcionários não tinham como direito assegurado o 13º salário, a garantia de não ser demitido arbitrariamente e nem a de que o salário não seria reduzido sem motivo. “Todos os direitos existentes na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, criada na França, eram muito violados, uma série de crimes contra a humanidade foi cometida pelo Estado brasileiro”, afirma.
O professor também lembra que além dessa limitações individuais, grupos também eram afetados. “Sindicatos eram reprimidos e a liberdade de imprensa foi drasticamente proibida, o que limitava a atuação de jornalistas”, diz. A repressão vivida por 20 anos culminou na pressão social para uma nova Constituinte.
O movimento para a nova Constituição: um país unido para garantir direitos
Assim como muitas das mudanças históricas, a realização da Assembleia Constituinte não foi fruto de um único fator ou movimento. Para Rodrigo Sartoti, movimentos pela Anistia até os estudantis levaram até a nova Constituição.
“Ali pelo fim dos anos 70 começa um intenso movimento. Primeiro pela Anistia dos presos políticos, marcado principalmente pela força feminina que atuou neste propósito. Com a volta dos exilados, começa-se o retorno das manifestações, que permaneceram ativas até 1988”, diz. “A participação dos movimentos sociais, sindicais, estudantis e de mulheres foram fundamentais para a nova constituinte”, conta.
Em seguida, houve um momento pré-constituinte, em que, entre 1985 e 1987, os participantes do debate discutiam sobre a escolha da natureza da constituinte. Eram duas opções: a primeira, um texto que causasse uma ruptura com a ditadura, mas que também, e inclusive, punisse os crimes cometidos pelo Estado.
“A segunda opção era a de romper com a ditadura, mas colocar uma pedra no passado e seguir em frente, sem punir os culpados. Acabou vencendo a segunda opção. Até mesmo porque no Congresso ainda haviam senadores eleitores em época de ditadura e eles tiveram voz no processo”, revela Rodrigo.
Apesar disso, o processo de criação do texto foi o mais democrático e popular já feito no país. Centenas de emendas populares foram aceitas, vários desses criados pelos movimentos sindicais, de negros e de mulheres.
O resultado do esforço conjunto em busca da valorização humana resultou na Constituição Cidadã. “É a primeira vez em um texto constitucional que os direitos fundamentais são colocados, em questão de ordem, antes da estrutura de Estado. Isso é simbólico e mostra o porque ela é chamada de Constituição Cidadã”, afirma.
O texto brasileiro, de acordo com Rodrigo, é considerado um dos melhores do mundo e é elogiado por especialistas do tema. “Pessoalmente, eu vejo com muito maus olhos quem fala que precisamos de uma constituição. Ela é a melhor que já tivemos no país e ainda permite reformas no que precisa ser atualizado de acordo com as novas realidades”, pontua.
O especialista convoca os brasileiros a entender a importância da Constituição e defendê-la de autoritarismos governamentais. “Sempre que surge um governo não afeito às democracias precisamos ficar em alerta. Precisamos defender a Constituição. É preciso defendê-la, principalmente, dos ataques às cláusulas pétreas e garantir a aplicação dos direitos constitucionais. Ainda temos muitas coisas que ainda não foram aplicadas”, declara.
“Muitas pessoas falam que o texto é recheado de privilégios e eu pergunto sobre quais, pois são direitos fundamentais. Geralmente, quem critica nesse sentido vem de um lugar de privilégios e isso incomoda, quando vem algo que quer equiparar”, diz.
Confira os 3 principais pontos de mudança que definem a essência da Constituição:
1. A seguridade da dignidade humana:
O artigo primeiro da Constituição traz os Princípios Fundamentais da República e o primeiro deles é o da Dignidade da Pessoa Humana. Em um país que viveu a limitação de liberdades individuais e direitos, esta é a virada de chave para uma nação democrática. Neste sentido, o artigo 5º traz uma extensa lista de garantias fundamentais: o direito à propriedade, à liberdade de ir e vir, de se expressar, de exercer a fé que desejar e de não ter a casa ou moradia violada.
A Carta também traz a proibição da tortura, garante a herança de maneira igualitária para filhos legítimos ou ilegítimos e o direito à certidão de nascimento e de óbito sem custo. A presunção da inocência e o direito de Justiça gratuita a quem não pode custear também são frutos da Constituição. O fim da censura em rádios, TVs, teatros, jornais e outros meios de comunicação também foi implementado.
2. A ampliação dos direitos sociais que trazem igualdade:
É considerado universal o direito à educação, à saúde, ao trabalho e à segurança. O texto responsabiliza o Estado pela promoção da educação. É por meio desta determinação que a oferta obrigatória de educação infantil, como creches e pré-escolas, o crescimento da oferta do ensino médio e a regulação do ensino por meio de conselho, comuns nos dias de hoje, foram estabelecidas.
Foi em 1988, também, que a Constituição trouxe, pela primeira vez, igualdade jurídica entre homens e mulheres. Também é reconhecida a família monoparental, em que o homem não é considerado o único chefe e que outras configurações familiares — sem a presença do homem — são consideradas família.
Além disso, outros grupos minoritários são reconhecidos e assegurados a terem direitos que os ajudem a se apresentar de maneira igual aos outros. Um exemplo disso é a citação para pessoas com deficiência e a proteção delas; assim como a proteção para crianças e adolescentes e idosos.
Também no texto é citado pela primeira vez em uma Constituição a valorização da cultura afro-brasileira. O reconhecimento de direitos das comunidades negras que viviam em Quilombos e os direitos para as comunidades indígenas, como a garantia da demarcação de terras são outras inovações nos direitos sociais.
“São uma série de dispositivos para evitar a discriminação ou propiciar uma discriminação positiva, como chamamos, a qual permite que os desiguais sejam tratados de forma desigual na medida de suas desigualdades”, pontua Rodrigo.
O especialista também afirma que foi o texto constitucional que permitiu a criação de outras leis para os desiguais, como os estatutos do Idoso, da Criança e do Adolescente e o da Igualdade Racial; a Lei de Inclusão das Pessoas com Deficiência e o Código de Defesa do Consumidor.
3. Direitos trabalhistas:
Redução de jornada semanal de 48 para 44 horas; seguro-desemprego; direito à greve; licença-maternidade de três para quatro meses e licença-paternidade de cinco dias foram as grandes mudanças na área. A liberdade sindical, inclusive para servidores públicos, foi outro avanço.
Diario de Pernambuco