Brasília- Indígenas protestam no Congresso Nacional, contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que altera a demarcação de terras indígenas. (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
A pandemia do novo coronavírus escancarou as fragilidades de um Brasil desigual e injusto. Entre inúmeras tragédias, a doença feriu de morte a memória dos povos originários. Mitos, línguas e a história indígena passaram a sangrar por rodovias e rios, após os modais de transporte se transformarem em vetores de um vírus que é ainda mais letal aos anciãos. De caminhão ou de barco, a covid-19 infecta etnias do Sul ao Norte, passando pelo Centro-Oeste e Nordeste. Em questão de dias, o novo coronavírus mata os mais velhos. Extingue bibliotecas vivas, receptáculos de culturas milenares, enquanto a carga puxada pela boleia ou embarcação, essencial para o desenvolvimento do país, segue em frente estrada acima, rio abaixo. Até ontem, levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) contabilizava 652 indígenas mortos e ao menos 23.453 infectados pelo coronavírus.
A história da primazia das rodovias no país tem início com a construção da capital federal, quando os políticos atenderam ao lobby de empresas automobilísticas norte-americanas e alemãs em nome do progresso. Em 1969, alinhados com os Estados Unidos, militares construíram a Transamazônica, outro episódio em que a estrada se sobrepôs à vida dos povos originários. Hoje, para as etnias que sofrem com a chegada do coronavírus pelas estradas, a pandemia é continuação de um conto de invasão e morte. Os vetores do vírus podem ser motoristas curiosos ou caminhoneiros que executam um trabalho fundamental para o país, mas param em terras indígenas por variados motivos, muitas vezes sem máscara. Sem saber, deixam para trás o rastro de contaminação.
Coube aos próprios povos se protegerem, contando com diagnósticos tardios, a máscara e, muitas vezes, longas viagens até o hospital mais próximo. Os territórios demarcados também servem à proteção de biomas e para frear a extração indiscriminada de minérios. A BR-070, importante rota do agronegócio, corta o território do povo Bororo, no Mato Grosso. E pela rodovia, o coronavírus chegou à aldeia Meruri.
Uma das lideranças locais, Eloenia Ararua relata que o contato entre caminhoneiros e a população é constante. Ela lembra que o município mais próximo fica a cerca de 30km. Ainda assim, motoristas param para fazer lanches ou almoçar. “Normalmente, não usam máscara. Na região, somos os mais contaminados. No Xavante tem muitos casos, mas com uma população bem maior. Caminhoneiros não deveriam parar. Temos baixa imunidade”, diz.
Eloenia conta os mortos. “Perdemos quatro pessoas na faixa de 70 anos para cima. O primeiro que morreu era uma grande liderança e foi o primeiro vereador que tivemos. Tinha vários trabalhos. O segundo ajudou na demarcação do nosso território quando houve conflito entre fazendeiros e a comunidade. O outro foi um fundador da aldeia, conhecedor da medicina tradicional, da cultura e dos cantos”, lamenta.
No Pará, a BR-222 corta a reserva Mãe Maria, do povo Gavião, em Bom Jesus do Tocantins. São mais de mil indígenas, 15 aldeias presas ao fluxo da rodovia. Coordenadora da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), Tuxati Parkateje conta que, em reservas no estado, a barreira sanitária não funcionou: aqueles que lá ficavam, acabaram sendo infectados pelos viajantes. Na Mãe Maria, a decisão foi por fechar a entrada das aldeias. Ainda assim, o vírus chegou.
Quando o primeiro caso foi confirmado, o pânico foi total. Tuxati conta que famílias pegaram alimentos, como arroz e feijão, e deixaram as aldeias na tentativa de ficar mato adentro, ainda mais distante de qualquer contato. Foi o caso dos seus tios, que correram para a mata — mas quando o fizeram, levaram com eles o vírus. A tia morreu antes de chegar ao hospital. Muitos indígenas não retornaram às aldeias até hoje. Para ela, houve ausência de política pública para o combate ao vírus nas comunidades.
O eixo da infecção
O coordenador executivo da Apib, Dinamam Tuxá, avalia que o trânsito nas rodovias é um dos principais vetores do novo coronavírus. E ele dá uma lista de situações na qual caminhoneiros se encontram com as etnias: em pequenas paradas para almoçar ou mesmo para colher uma fruta na beira da estrada. “BRs como a 101, a 116, que cortam o Brasil, passam por várias comunidades. No Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, berço do agro, há fluxo grande de carga. Muitas comunidades são ponto turístico, como na Bahia. As pessoas param para almoçar, conhecer, descansar. E esse trânsito está levando a covid-19. O próprio estado não fez medida de prevenção e contenção pensando no trânsito nessas vias”, diz.
É possível observar de forma clara o avanço da doença acompanhando o traçado da BR-153, segundo o antropólogo e professor de ciências sociais da Universidade Federal do Tocantins (UFT), André Demarchi. A rodovia, que é rota de grandes caminhões e atravessa o estado, passa próxima a terras indígenas e carregou o vírus para as aldeias. O primeiro povo atingido, segundo ele, foram os Apinajés, que ficam em uma área que engloba quatro municípios e duas rodovias federais. Os autóctones criaram barreiras sanitárias, mas, segundo o professor, isso não impediu que o coronavírus chegasse às aldeias.
Um dos líderes dos Apinajés, Antônio Veríssimo Apinajé aponta que o fluxo de caminhões e as grandes rodovias na proximidade da terra carregaram a covid. De acordo com ele, um dos primeiros casos foi justamente o de um caminhoneiro. Dentre os que vivem nas 42 aldeias, no entanto, não houve casos. Ouvindo as histórias dos anciãos e de doenças que no passado atingiram indígenas, como a varíola, Antônio conta que as aldeias levaram a pandemia a sério desde o início. Logo, fizeram uma barreira sanitária para frear a entrada na terra e os idosos foram removidos às aldeias mais isoladas.
Em Aquidauana (MS), nas terras do povo Terena, a assinatura de uma ordem de serviço de pavimentação de uma rodovia para ligar o território com a cidade em julho foi o pontapé da infecção de indígenas nas aldeias, segundo o biólogo Eriki Paiva Terena, que atua no Conselho do Povo Terena. O evento contou com a presença de vereadores, deputados e outros políticos, além de candidatos aos pleitos municipais. Quatorze dias depois, quatro pessoas apresentaram sintomas, uma delas morreu. A população havia feito barreira sanitária para tentar impedir a chegada do vírus mas, mais uma vez, uma rodovia o levou. Para Eriki, faltou ação por parte do governo para proteger as comunidades. “Virou um jogo de empurra. E tivemos tempo antes (da chegada do vírus). É uma completa ineficiência”, diz.
Professor de antropologia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Antônio Hilário Aguilera Urquiza ressalta que toda construção de rodovia, ou duplicação, que é próxima a terras indígenas exige um estudo para se analisar o impacto socioambiental, algo previsto em legislação federal.
“A princípio, toda estrada de rodagem, de asfalto ou não, é uma forma de invasão. Existe esse impacto. Imagine, então, em tempo de pandemia”, afirma. Urquiza, que trabalha com povos originários há mais de 30 anos, pontua que todos que transitam dentro ou próximo desses territórios, como chacareiros e caminhoneiros, são foco de contágio para as populações nas aldeias.
Ausência do Estado
Em meio ao aumento de casos e mortes que atingem as aldeias, mesmo as mais longínquas, as lideranças indígenas reclamam da ausência do Estado. Integrante da Coordenação das Organizações dos Indígenas Amazônia Brasileira (Coiab) e articuladora da Fundação Nacional do Índio (Funai) Angela Kaxuyana avalia a necessidade de testar quem entra ou sai dos territórios. “As rodovias são uma perigosa porta de entrada do coronavírus em aldeias e outras comunidades, pois não se tem controle e monitoramento para fazer testagem dessas pessoas”, destaca. Para ela, o governo deve fazer ações de monitoramento de acesso aos territórios indígenas.
Coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinamam Tuxá ressalta a importância da fiscalização. “Quando montamos barreira, somos repreendidos. Se houvesse um plano estruturante de contingenciamento dentro das terras indígenas, com fortalecimento das barreiras, não teríamos esse número de contaminados que se tem hoje. Há que ter um controle. Os caminhoneiros estão trabalhando, prestando um serviço. Então, precisamos do Estado.”
Como as etnias têm relações comerciais com os municípios, a assessora da Federação dos Povos Indígenas do Mato Grosso (FepoiMT) Eliane Xunakalo destaca que o cuidado precisa de duas vias. “Temos relações de consumo, de parcerias. O melhor seria que a rodovia não passasse nas terras indígenas. Os Caiapós fecharam (a rodovia), mas a competência é do governo e isso gera conflitos. E nesse período o governo não está preocupado com nossos povos. Não nos é reconhecido o direito à saúde na prática.”
A deputada federal Joênia Wapichana (Rede-AP) destaca que, além das rodovias e hidrovias, existem casos em que os próprios agentes de saúde e militares levaram o vírus para territórios isolados, de avião. Isso, sem contar os garimpeiros e madeireiros ilegais. “O principal ponto que sempre nos preocupou para garantir o isolamento social é que tivesse uma fiscalização na entrada.”
Funai
A Funai afirma que bloqueios trazem risco de comprometimento do abastecimento. Em março, o órgão suspendeu as autorizações de entrada em terras demarcadas em todo o país. Em nota, a fundação informa que o órgão reforçou ações de prevenção em conjunto com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e que já investiu R$ 26 milhões em medidas de combate ao coronavírus. A Funai diz, ainda, garantir a segurança alimentar e higiene de famílias indígenas, com distribuição de cerca de 500 mil cestas básicas e quase 62 mil kits de higiene pessoal e limpeza.
Também afirma que realizou “ações de vigilância e monitoramento territorial” e participa de 271 barreiras sanitárias para impedir a entrada de não indígenas em aldeias. O órgão contabiliza 151 ações de fiscalização em 63 terras demarcadas para coibir “extração ilegal de madeira, garimpo e pesca predatória.”
Correio Braziliense