Quem acompanha, desde o início, as notícias sobre o novo coronavírus dificilmente ouviu ou leu constatação mais comum do que o fato de que se sabe muito pouco sobre o agente infeccioso que parou o mundo na cibernética e globalizada década de 20 do século 21. E essa incerteza é a tônica do debate sobre questões diversas que influenciam as decisões políticas e impactam o dia a dia em meio à crise.
Entre elas, a extensão do isolamento social, a forma e o momento em que será viável retomar as atividades econômicas e até que ponto o sistema de saúde será capaz de garantir o atendimento à população e evitar o colapso da falta de leitos, em que o pior cenário seria a equipe médica ter de escolher quem deve ser atendido e quem deve morrer.
Para que essas questões sejam analisadas, é preciso entender, primeiro, o comportamento do vírus. Estima-se que o número de reprodução básica, o R0, do Sars-Cov-2 fique entre 2 e 3, o que significa dizer que uma pessoa infectada contamina, em geral, outras duas ou três. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a taxa de letalidade é dez vezes maior que a do H1N1.
A velocidade com que a doença se espalha é maior do que a capacidade de distribuição e realização de testes no País, que é insuficiente para o tamanho da população. Mas, para mapear de forma mais precisa a expansão do vírus pelo território, é necessário mais do que notificar os casos graves, como tem sido feito. Os assintomáticos, isto é, os pacientes que não apresentam sintomas, também deveriam ser contabilizados.
Além disso, falta compreender a própria gravidade da Covid-19 e as implicações que isso acarreta: de onde vem essa capacidade de transmissão tão alta; por que ela afeta algumas pessoas mais do que outras, ainda que as condições de saúde e qualidade de vida sejam parecidas; se é capaz de infectar o mesmo paciente mais de uma vez; e, principalmente, qual o medicamento mais eficaz. Fora isso tudo, estuda-se a possibilidade de produção de uma vacina que imunize as pessoas contra a doença.
Diante de tantas dúvidas, outra constatação muito comum é a necessidade de “achatar a curva” de crescimento da pandemia. Isso significa retardar o aparecimento de novos casos para que, em vez de atingir todo mundo de uma vez só, o vírus tenha uma expansão mais prolongada, dando tempo para a abertura de vagas no sistema de saúde.
Por isso, as medidas de incentivo ao isolamento social.
“Nós estamos subindo uma montanha no escuro e a nossa lanterna, que é a quantidade de testes, é muito fraquinha. Quando você está no escuro e não sabe para onde está andando, o que você faz? Para e vai tateando. Estamos nessa situação. Fazer mais testes é como colocar mais velas na casa”, compara Jones Albuquerque, pesquisador do Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (Lika) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Descrito o cenário atual, cientistas tentam descobrir por onde e de que forma a Covid-19 deverá se expandir nos próximos dias. Outra questão que fica é: qual o impacto real das medidas de isolamento social sobre a evolução dos casos? A Folha de Pernambuco conversou com pesquisadores locais e de outros estados para compreender melhor esse panorama. E, em todos esses lugares, a boa notícia é que o avanço da infecção está mais lento do que antes das ações restritivas.
Projeções
A nova pandemia mobiliza a comunidade científica de todo o mundo em busca de soluções para os impactos que a doença causa em cada sociedade. Em Pernambuco, universidades e instituições como as fundações Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Joaquim Nabuco (Fundaj) reúnem dados estatísticos que acompanham a contagem diária de casos e mortes, considerando a realidade dos locais onde as notificações são feitas.
Professor do Departamento de Estatística e Informática da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Jones Albuquerque observa que a curva do gráfico no Estado começou a se achatar depois dos decretos que restringem a circulação de pessoas e estabelecem o distanciamento social. Com base nos números que tem monitorado, ele estima que o número de mortes seria cerca de dez vezes maior do que o atual caso as medidas não tivessem sido tomadas. “Se estávamos numa ordem de grandeza de milhares, caímos para centenas. Se hoje estamos em mais de cem mortos, se não tivéssemos feito nada, estaríamos com mais de mil”, explica.
O levantamento realizado pelo professor considera o ritmo de crescimento da Covid-19 na Itália comparado com o início do contágio em Pernambuco. “Até 29 de março, estávamos acompanhando a Itália, na mesma velocidade. Então, a gente muda isso e cai para outra curva”, afirma Albuquerque, que toma como referencial o número de mortes registradas. “No dia 10 de abril, tínhamos 32 óbitos, quando as projeções apontavam para cerca de 300. E eu atribuo isso às campanhas de isolamento social”, conclui. Com relação ao número total de casos confirmados, as projeções indicam que, neste fim de semana, o Estado pode chegar a 2.196 notificações até o domingo, 19 de abril.
Embora por metodologias de pesquisa diferentes, essa diferença entre os casos projetados e os que se confirmaram na realidade também foi observada em outros estados. Um estudo realizado pelos departamentos de Física e Epidemiologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) mostra que, por lá, os registros de confirmações para Covid-19 apresentaram um ritmo mais lento poucos dias após os decretos.
“Há um crescimento exponencial que Fortaleza teria se não houvesse a contenção, enquanto a curva de casos confirmados continua com outra inclinação, muito mais linear. E a diferença entre essas duas curvas seria a quantidade de casos a mais. A partir do dia 26 ou 27 de março, a primeira tem um crescimento tão grande que a outra vai ficar tão achatada que fica próximo a zero e a escala das duas não fica mais compatível”, explica o professor de Física e coordenador da pesquisa, José Soares.
Por isso, o cientista acredita que, se as regras de distanciamento social forem flexibilizadas agora, o aumento no número de casos voltará a crescer vertiginosamente. Para continuar acompanhando o avanço da doença e fazer novas projeções, ele adotará um modelo estatístico mais complexo. “O modelo que usamos é bom para pequenos tempos iniciais. Mas o que sabemos pelo próprio comportamento da pandemia na China é que devemos levar em conta as pessoas que têm sintomas leves, moderados e graves e os assintomáticos, que seriam na ordem de 84% das pessoas contaminadas. E o epidemiologista, o físico e o matemático não sabem quantas dessas pessoas são”, diz.
Ao se deparar com resultados semelhantes, o professor de Física José Fernando Diniz Chubaci, da Universidade de São Paulo (USP), ressalta a rapidez com que as medidas de isolamento tiveram efeito sobre a evolução dos casos. “No começo da pandemia, São Paulo tinha mais casos que o Brasil, e isso foi crescendo. E todo dia eu ia registrando. Aí eu percebi que São Paulo estava diminuindo o ritmo de crescimento, e o Brasil estava muito rápido. Os governos tomando a iniciativa de fazer a política pública de isolamento social, rapidamente você tem a resposta”, comenta.
Com uma propagação muito rápida, a capacidade de transmissão do coronavírus constitui um desafio para os estudiosos, que esbarram em diversas variáveis. “Quando eu olho que alguém está infectado, é porque ele fez o exame. Quando começou a infecção dele? Pode colocar uma semana para trás. Ou seja, o que a gente vê agora é sempre olhando o passado”, explica Jones Albuquerque.
Mapeamento
Apesar da falta de informações mais completas que seriam viabilizadas pela testagem em massa, pesquisadores da Fundaj põem no mapa os números oficiais registrados até o momento. No painel disponível no site da instituição, é possível visualizar quais os locais mais afetados e para onde o vírus está se expandindo. De acordo com o coordenador do Centro Integrado de Estudos Georreferenciados para Pesquisa Social (Cieg) da instituição, Neison Freire, as áreas com a maior probabilidade de contaminação coincidem com as de maior adensamento populacional.
“[O coronavírus] está indo em todas as direções, mas existe uma principal. O eixo de dispersão, como a gente tecnicamente se expressa, é onde temos o maior número de contaminados e tem uma direção nordeste-sudoeste. Ele vai de Fernando de Noronha, passando pela Região Metropolitana do Recife, em direção a Palmares, na Mata Sul”, detalha. “Em cada local, o vírus vai se adaptando às condições geográficas e à ocupação urbana, se ela é mais densa, mais precária. Então, ele está procurando as áreas mais populosas e onde as pessoas não estão cumprindo como deveria o isolamento social”.
Na última sexta-feira (17), durante coletiva de imprensa virtual, o secretário de Saúde do Estado, André Longo, reafirmou a necessidade de manter a política de distanciamento, citando um “pequeno” estudo desenvolvido no Recife que indica que mais de 200 vidas chegaram a ser poupadas. “Isso já faz um tempo atrás, acho que até tem que atualizar”, informou. O gestor ponderou, no entanto, a taxa de isolamento, que hoje varia entre 50% e 60% da população, precisa aumentar. “Se tivéssemos praticado um isolamento na casa dos 70%, 75%, estaríamos [numa situação] muito melhor do que estamos hoje”, ressaltou.
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