Por JEAN WYLLYS*
Parece-me bastante claro (mesmo para a pessoa mais “despolitizada” ou alheia que se tenha notícia) que umas das vozes mais expressivas na colcha de retalhos (nem sempre combinados ou nem sempre em harmonia) que foram as últimas manifestações que sacudiram ruas e mídias; parece-me claro que uma das vozes mais altas aí foi aquela que pôs em xeque a representação de governantes e parlamentares eleitos e reivindicou reforma política. Parece-me, mas acho que posso estar enganado a julgar pela postura de alguns (a maioria?) dos meus colegas aqui na Câmara Federal.
Antes mesmo de as pessoas irem às ruas reivindicar, entre outros itens, a reforma política, criou-se aqui um grupo de trabalho encarregado de elaborar uma nova lei eleitoral que entraria em vigor já no próximo ano, quando ocorrerão eleições para presidente da república, senadores, deputados federais, governadores e deputados estaduais.
Mesmo tendo assistido – pela janela do quarto, pela janela do carro ou pela tela da televisão ou do computador – às manifestações, os deputados que integram esse grupo de trabalho tiveram a coragem de apresentar um texto que me dá vergonha (como eles conseguem estar imunes a este sentimento tão comum a quem se preocupa com o outro?). O projeto elaborado pelo grupo de trabalho até o momento não promove alteração substancial no sistema eleitoral, de modo que temas importantes e fulcrais para uma verdadeira mudança na política nacional – tais como o financiamento público exclusivo de campanhas e a lista pré-ordenada – ficaram de fora.
Não só isso. O texto retrocede em relação a dispositivos em vigor nas últimas eleições e capazes de garantir um mínimo de lisura e ética no processo eleitoral: a) diminui a sanção de suspensão do Fundo Partidário para os partidos que tenham suas contas reprovadas; b) assegura a possibilidade de se pagar multas eleitorais com os recursos do Fundo Partidário; c) reduz a multa aplicada a doadores que realizam doações ilegais (hoje é de 5 a 10 vezes o valor e passará a ser de 50% até 100% do valor); d) permite que o candidato que receba doação de concessionário ou permissionário público possa devolver o valor da doação 30 dias após a eleição; e) facilita a utilização da “máquina pública” pelo governante na medida em que permite o comparecimento de agentes públicos em cerimônias de inauguração de obras ou de projetos públicos; f) descriminaliza a boca de urna ao fixar multa de 15 a 100 mil reais; g) estende o conceito de “brindes” de modo a prejudicar a vedação de fornecimento de qualquer bem para eleitores (leia-se compra de votos!); h) libera a propaganda PAGA na INTERNET, inclusive em portais de conteúdo (será que os editoriais de políticas dos grandes portais, tão zelosos da moralidade pública, colocar-se-ão contra essa medida?); i) torna relativo o conceito de “agente público” de modo a possibilitar, por exemplo, que o governador de um estado possa adotar, nas eleições municipais, condutas atualmente vedadas.
Preciso dizer mais alguma coisa?
Será que os “gigantes” despertos irão além da exibição, nas ruas e no Facebook, de suas cartolinas com reivindicações genéricas e entrarão de cabeça nesse debate, mas com informação, discernimento e honestidade intelectual suficientes para não misturar o joio e o trigo da política? O que esse debate menos precisa é de ignorância motivada! Identificarão os deputados do grupo de trabalho e lhes enviarão email ou marcarão audiências em seus escritórios de representação nos estados que o elegeram?
Se, como diz a canção, a pátria-mãe (prefiro “pátria-mãe” a “gigante”; além de feminista, não tenho por que endossar a campanha da gigante corporação Johnnie Walker!) dormia distraída até então, sendo subtraída em tenebrosas e históricas transações, e agora despertou, não pode cochilar em relação a esse projeto de reforma eleitoral!
* Jean Wyllys é jornalista, linguista e deputado federal pelo PSOL-RJ. Texto publicado originalmente em CartaCapital