Desde que Jair Bolsonaro tentou desqualificar a memória do pai de Felipe Santa Cruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o advogado fluminense passou a ser reconhecido nas ruas. “As pessoas param para me cumprimentar e tirar fotos, falar alguma coisa. Estou aprendendo a lidar com isso”, diz ele. Segundo a Comissão de Mortos e Desaparecidos, a morte de Fernando Santa Cruz foi violenta e causada pelo Estado brasileiro.
“A memória do meu pai, eu construí do depoimento dos outros, por isso que ele é muito mais político do que pessoa, é muito mais uma memória política que eu tenho que zelar.” Depois do ataque de Bolsonaro, Felipe, de 47 anos, diz que separou as coisas. “Fiz um exercício enorme de não me deixar levar pela raiva do filho, que óbvio que eu senti, é humano, e fiz um exercício de policiamento para não deixar a raiva suplantar e cegar”, disse, em entrevista ao Correio nesta terça-feira (13).
“Há um cansaço desse circo que o presidente inaugurou, é um circo contra tudo o que compreendemos como civilizatório”, afirmou. “Eu me preocupo porque, talvez, ele esteja flertando com um modelo autoritário. O quanto isso tem de fanfarronice e o quanto de conteúdo é que nenhum de nós consegue definir.” A seguir, os principais trechos da entrevista, em que ele ainda fala sobre Vaza-Jato — criticando o fato de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol não terem pedido licença dos cargos —, meio ambiente, minorias e embaixada dos EUA.
A OAB sai mais fortalecida desse episódio protagonizado por Bolsonaro contra a entidade?
Eu acredito que sim, principalmente porque o episódio nasceu a partir da defesa de prerrogativas. É tão interessante isso, porque, se fosse um episódio que nascesse, por exemplo, de um ataque político ao presidente, uma crítica dura excessiva, porque pode acontecer… Mas o presidente escolheu para essa confusão todo um episódio absolutamente rotineiro de prerrogativas, que não é nem da minha gestão (a questão envolvendo o sigilo dos advogados). É, digamos assim, o feijão com arroz da advocacia garantir o sigilo. Ele ataca o feijão com arroz, e isso para a advocacia foi muito compreendido, porque tem pessoas que apoiam o Bolsonaro, que não apoiam, é natural, mas não há na advocacia aqueles que não apoiam os instrumentos do exercício profissional da advocacia. O presidente foi (contra) o elo mais fraco. Esse processo do Adélio (Bispo, agressor de Bolsonaro), se vocês pararem para pensar, a Polícia Federal investigou, e você não vai me convencer que não tenha feito uma grande investigação. Foram duas investigações, jogou-se tudo que podia para investigar e, acredito, com toda a competência. Tivemos certamente melhores delegados, melhores investigadores, eu conheço como funciona, advoguei muitos anos para os agentes da Polícia Federal. O Poder Judiciário julgou, nós tivemos duas ou três perícias sobre a questão da sanidade mental dele.
Inclusive os delegados da PF estão irritados com o presidente, que insiste num resultado diferente para a investigação…
Sim, o Ministério Público funcionou, não houve recurso e aí a culpa é de quem? ‘Ah, o sigilo profissional do advogado…’ Quer dizer, de toda essa corrente de Estado, é o lado mais fraco. É o ladinho ali do indivíduo, do cidadão, o mínimo que ele tem é falar com seu advogado em sigilo. Tem toda essa máquina, esse aparato estatal gigante tratando o caso, chega a uma conclusão, e o presidente se recusa a admitir a conclusão, e coloca no lado mais fraco.
Agora, Bolsonaro tem uma bronca com o senhor também…
Não, não, eu não acredito. Não acho não.
Ele tinha falado da outra vez…
Eu acho que ele é um cara de poucas luzes, ele conhece poucas histórias. A história do meu pai está na cabeça dele por um episódio antigo. Ele foi cercado pelos estudantes da UFF (Universidade Federal Fluminense) quando ofendeu a memória do meu pai, lá em 2010. Então, ele guardou essa história na cabeça como guardou poucas, ele não é um cara dedicado e aí, em um momento de raiva, ataca o meu pai.
Mas o senhor também foi vítima de fake news pelos bolsominions em um determinado momento
Desde o meu primeiro dia aqui de mandato.
Sim, o senhor acabou de certa forma marcado…
Acredito que eles tenham uma imagem que querem deslegitimar a OAB com essa imagem do filho do desaparecido. Eles querem colocar a OAB dentro da polarização. Eu nunca aceitei esse papel, até porque, aqui, há coisas que nós vamos apoiar, como já apoiamos, e há coisas que nós vamos criticar, é o papel histórico da OAB.
O presidente foi cruel?
O que ele fez foi cruel, é uma coisa meio adolescente despreparado. Eu estou discutindo com você um tema e aí eu ofendo o seu pai, que está doente, eu ofendo o seu pai, que morreu. É uma conduta que não é da esfera pública, e não é uma conduta que se espera de um presidente da República, ela (a conduta) não tem a compostura do cargo.
Depois daquele episódio, o presidente desandou a falar…
Foi, e, se você notar, eu acho que no meio da fala ele fica em dúvida do que está fazendo. Tem uma hora, eu já assisti muito a essa fala, ele nota que ultrapassou um limite ali, só que, pela personalidade dele, não admite essa ultrapassagem de limite. Eu acho que ele acelerou e, daí para frente, radicalizou as posições dele.
Que conselho o senhor daria a Bolsonaro?
Fazer o que eu faço: guardar as mágoas, ter serenidade. Há uma diferença do papel, eu tento fazer isso em uma microesfera, e eu sou presidente de uma entidade, eu tenho aqui o meu papel institucional, que não pode se confundir com os meus ódios, as minhas frustrações, os meus traumas. Eu tenho de separar as duas coisas, eu presido aqui uma entidade que tem muitas pessoas que apoiam o presidente, e eu tenho que respeitá-las, respeitar o seu pensamento. Eu me coloco hoje muito mais como um social-democrata, uma pessoa de centro, e vejo essa loucura polarizada no país com tristeza.
O senhor recebeu solidariedade de algum general, ou de alguém do governo?
Do governo, não. Recebi de deputados do PSL, do deputado Felipe Francischini, que é presidente da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça). Recebi de todo espectro, do governador do Rio Grande do Sul, de São Paulo, do Maranhão, do Piauí. Foi tanta gente, confesso, que estou até organizando a forma de fazer ofícios e de agradecer a todo mundo.
Falando da retórica do presidente, qual a interpretação do senhor disso tudo?
Ele está seguindo o caminho que o trouxe até aqui. Ele tem uma parcela do eleitorado que é muito radicalizada, e alimenta essa parcela com essas polêmicas. O que me preocupa é a normalização de coisas que são anticivilizatórias e causaram danos ao Brasil. A gente já sabe da imagem do país hoje, por conta da questão do meio ambiente. Essa questão, não no meu aspecto pessoal, mas, internacionalmente, pesa muito, por conta de toda uma transição da anistia, da transição para a democracia. Eu tenho sido muito procurado por jornais do mundo todo preocupadíssimos com esse negacionismo. O Brasil, de certa forma, fez um modelo de transição pactuada. A OAB foi que ajudou esse modelo a, digamos, ser uma transição suave, ao contrário de outros países. Então, ele reabre feridas e, com isso, coloca o país em uma posição difícil internacionalmente. É muito cedo, nós estamos com seis meses de governo, estamos vivendo uma espécie de aceleração sem fim dos temas, e eu me preocupo muito.
O senhor acha que existe uma estratégia do presidente ao falar essas coisas todas?
Eu acho que uma parte é estratégia, de alimentação do eleitorado dele, e outra, dele mesmo. Acho que ele tem, dentro dele, um sentimento de violência, que ele expressa de forma repugnante quando exalta a memória de um torturador. O presidente, quando usa a extrema importância do seu cargo para receber a viúva do torturador, poderia até recebê-la no aspecto privado, com carinho. Mas, para fazer daquilo ali um manifesto pela memória da tortura, eu acho que isso que está dentro dela é a incompatibilidade que existe entre o homem cristão que ele se diz e os valores que ele professa.
O debate de nomear um ministro evangélico preocupa o senhor?
Não. Acho que não deveria ser esse o critério. Acho que pode ser um evangélico, pode ser um católico, como pode ser um ateu, um judeu. O critério deveria ser a formação jurídica, a solidez do pensamento.
Alguns protagonistas do poder em Brasília já falam em impeachment…
Eu acho que o Brasil se traumatiza a cada impeachment desses. Eu acho muito mais importante discutir uma reforma política que, de uma vez por todas, venha a compatibilizar uma constituição parlamentarista como um regime presidencialista. Ou nós vamos criar esse impeachment, que é voto de desconfiança, como aconteceu com a presidente Dilma. Ela perdeu as condições de sustentabilidade, tanto que se preservaram os direitos políticos.
Agora, o senhor está falando que a cada impeachment se tem um trauma…
Tem, acabamos de sair de uma campanha. Eu acho que nós todos temos de ter tolerância e exigir do governo que ele entre nos eixos constitucionais.
A OAB foi uma das responsáveis nesse processo com a Dilma. Avaliando agora o momento histórico, a entidade acertou naquele momento?
Eu acho que aquele momento era o que a conjuntura nos levou a fazer. Eu tinha dúvidas na época, mas acompanhei o sistema, porque o impeachment já estava apresentado.
Mas o presidente não está ultrapassando limites?
Depende de quais são os limites. Eu acho que muito mais grave do que falou do meu pai é a perseguição na Petrobras, que vai contra tudo que ele falou de impessoalidade. Ali, há um crime de responsabilidade e quebra de impessoalidade (a Petrobras cancelou contrato que tinha com o escritório de Santa Cruz). Eu ligo para uma empresa que não é uma empresa pública e determino perseguições. Não estou nem falando no meu caso, eu acho isso um futuro muito preocupante, porque demonstra um aparelhamento do Estado que não é republicano.
Mas como não está falando do seu caso? Não ocorreu isso no seu caso?
A partir do meu caso nós temos observado que há esse mesmo espírito nos conselhos, que é um espírito de retirada da pluralidade. A quebra da impessoalidade para a ocupação dos espaços por aqueles que concordam é muito grave, por exemplo, do que o presidente dizer que o próximo PGR terá de comungar dos pensamentos dele. É uma quebra de paradigma, é o que eu estou te falando na normalização dos absurdos. O problema desse ritmo do presidente é que ele começa a normalizar pensamentos que não são constitucionais.
Bolsonaro não está se mostrando diferente do que ele era na campanha?
Isso. E alguns professores, eu leio muito o que alguns juristas estão pensando, dizem que a retórica do autoritarismo ainda não virou instrumento autoritário, que é esse limite que nós temos de acompanhar para o impeachment. Quando for uma retórica que alimenta alguma parcela do eleitorado, digamos assim, ela nos choca, é preocupante, não pode ser normalizada, mas a gente tem de acompanhar dentro do aspecto ainda do jogo político. Agora, me preocupa, por exemplo, a redução dos conselhos. A questão do meio ambiente, para mim, é a que mais incomoda hoje, porque essa é irreversível. Causa um dano à imagem do país, causa um dano ao futuro da humanidade. Ela não pode ser uma retórica eleitoral, tem uma obrigação muito além, inclusive da nossa territorialidade. Há pontos que nos preocupam muito.
Essa questão de ele ter rescindido o seu contrato com a Petrobras é equiparado ao uso da máquina contra um adversário?
Claro que é, ele não nega, é fantástico. Pense um outro presidente na história da República que tenha dito: “Eu vou demitir o fulano, mandei tirar porque não concorda comigo”. Eu não sou advogado da Petrobras. Eu fui procurado para fazer uma tese, fui vitorioso na tese, porque sou um especialista, os seus sócios foram beneficiados pelo meu trabalho, e ele diz que, por conta de um outro assunto, eu devo ser perseguido, ele diz abertamente. E desconhece, inclusive, o funcionamento da OAB: ‘Ah, ele já está na OAB, tem muito dinheiro’. Aqui, eu trabalho voluntária e gratuitamente. Aliás, o fato de eu ser um advogado bem-sucedido é que me permite doar parte do meu tempo aqui para a Ordem.
O uso da máquina contra um suposto adversário é semelhante ao fato de ele usar o governo para colocar o filho em uma situação de protagonismo…
Sim, por isso que eu digo, ele é um homem de poucas luzes. Tem dificuldade de separar o público do privado, há uma dificuldade dele de formação, basta ouvir as falas dele. Não sabe muito bem o que é Estado, o que é governo, quais são as instituições, qual o papel das instituições, quais são os limites dele. Veja o Itamaraty. Eu sou de uma geração em que o Itamaraty, para nós, era algo inacessível. Nós íamos para o bar, no fim da aula, falar de um colega nosso que pretendia o Itamaraty, o Rio Branco, com orgulho, entendeu? Porque ele tinha a nossa idade, já falava quatro línguas, já tinha morado na França, conheceu profundamente tal autor. Nós, que éramos bons alunos e tínhamos um futuro pela frente, não nos considerávamos elegíveis, não éramos pessoas passíveis de entrar no Itamaraty. Bermudez, Carlos Alberto Direito, Joaquim Barbosa, todos foram meus professores. Então, assim eu digo: ‘Meu filho frita hambúrguer e é isso mesmo’. É um processo civilizatório que vai sendo jogado fora, eu pego, sei lá, 100 anos.
Uma intromissão da Justiça não poderia frear tais coisas?
Mas eu acho que temos de voltar as instituições para o seu rio. Eu também não acho que a judicialização de tudo seja a saída, agora é a hora de o Senado mostrar qual é o seu papel (na avaliação de Eduardo Bolsonaro para o cargo de embaixador dos EUA).
E se o Senado não mostrar?
Aí nós temos de acompanhar e cobrar dos senadores, porque todos os especialistas que eu li nas últimas semanas, não só especialistas na área, dizem que ali há uma brecha, que é o cargo político, não é o cargo de confiança, que é a esfera política, essa esfera de apreciação. Eu não acho que deva se retirar do Senado essa responsabilidade, se ele vai cumprir ou não a responsabilidade é o que vamos ver agora. E que o país discuta o que ele quer desse embaixador, com inglês deficiente, sem formação cabível, sem compreensão de qual é o papel.
A cada momento há um teste de limites. Um país aguenta isso quanto tempo?
Acho que todos nós já estamos cansando. Há um cansaço desse circo que o presidente inaugurou, é um circo contra tudo que compreendemos como civilizatório. Eu me preocupo porque, talvez, ele esteja flertando com um modelo autoritário. O quanto isso tem, como dito aqui, de fanfarronice e o quanto isso tem de conteúdo é que nenhum de nós consegue definir.
Qual é o perfil ideal, neste momento, para um procurador-geral da República?
O que sempre foi: independência, autonomia, equilíbrio, não ser tomado pela vaidade de ser o centro dos acontecimentos. Eu digo isso desde o dia em que tomei posse. O momento depois da eleição é de pacificação, o Brasil superou um momento muito difícil. Legitimamente, a população quer o combate à corrupção, mas quer muitas outras coisas: crescimento, estabilidade. Temos 13 milhões de miseráveis, ampliando isso, 12,8 milhões de desempregados, 4,9 milhões de desalentados, 40 milhões de pessoas em subempregos, que é essa informalidade. Então, nós precisamos que as pessoas voltem ao seu ritmo de trabalho. E me preocupa muito que o presidente seja o primeiro a confundir esses papéis. Ele demonstra incompreensão do papel da Ordem, do Judiciário. A cada momento, afronta o Congresso. Afrontou muito até o estabelecimento de uma liderança mais sólida do Rodrigo (Maia), e isso é verdade. Hoje, ele tem de negociar, porque o Congresso está muito solidificado de um campo próprio, mostrou isso com a reforma da Previdência, que, mais ou menos, passou à margem do comportamento presidencial. As instituições têm de dar essa resposta, cada uma no seu papel.
A escolha para eleição direta à OAB não seria a melhor?
Eu acho que a OAB tem de discutir o seu modelo eleitoral e modernizá-lo. Eu sempre fui um simpatizante da eleição direta. A nossa preocupação é que somos uma entidade privada, com receita limitada, porque é uma estrutura muito grande no Brasil. Quanto custaria uma eleição dessas? A estrutura de uma eleição dessas? Também tem a preocupação com o abuso do poder econômico, mas já estou criando uma comissão para modernizar as nossas formas de escolha. E digo que, na história da OAB, poucos presidentes tiveram mais chances de serem eleitos diretamente do que eu. No passado, eu tinha apoio do meu estado, onde eu ganho eleições com 60% dos votos há três eleições. Eu tinha apoio de São Paulo, só aí são 50% da advocacia brasileira.
A falta de eleição direta da OAB é criticada por aliados do presidente…
Está sendo usada por quem não compreende o nosso sistema, os aliados do presidente. Como se fosse uma fragilidade minha. Poucas pessoas na história dessa entidade tiveram mais chance de se eleger diretamente do que eu, aliás, sempre foi essa a minha defesa.
Nem teve adversários, não é?
É, fui eleito por unanimidade, e tinha o apoio dos grandes e pequenos estados, tive uma carta assinada por 27 estados.
Por que a OAB resiste em ser fiscalizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU)?
Eu não resisto. Aliás, já sentei e conversei com o TCU. Eu posso aplicar aqui todo o manual do TCU. Este momento está mostrando por que nós resistimos. Eu sou completamente contramajoritário? Estou apanhando de uma parcela substancial da população. Eu vou defender populações indígenas? Vou, é a lei. Vou defender minorias? Vou defender a população LGBT? Vou defender o meio ambiente? Parte das despesas aqui é gasta, por exemplo, em congressos de meio ambiente, de direitos humanos, de jovens. Eu não quero, e a OAB não aceita, que exista controle estatal da finalidade da nossa atuação. Isso aconteceu na ditadura militar. Qual foi o último momento em que essa discussão foi aprofundada? Em 1978, Raymundo Faoro resistiu exatamente por isso. A Ordem no Brasil não é um conselho profissional, ela está constitucionalizada por isso. Ela (Ordem) é a entidade-chefe que lidera a sociedade civil, inclusive para ser dura em matérias que são de independência, nós somos independentes.
Por que é importante o Exame da Ordem?
Nós tivemos, só neste ano, a criação de 42 cursos de direito e mais de 10 mil vagas. Nós temos 1,2 milhão de advogados, 890 mil estudantes ativos em sala de aula de direito. Não sou de uma visão elitista de direito. Não sou daqueles que dizem: ‘Feliz era o tempo que existia a PUC, a Federal e, antes disso, Coimbra’. Coisa de pertencimento. Mas acho que essa ampliação precisa ser acompanhada, primeiro, de uma necessária avaliação do que será o mercado, porque há uma transformação não só no direito, mas em todas as profissões. Boa parte desses estudantes estava se preparando, na verdade, para serviço público. A crise fiscal, por exemplo, no meu estado, acabou com os concursos públicos e deve acabar nacionalmente com uma série de concursos. Tem uma juventude que paga com muita dificuldade esses cursos, e cursos, em sua maioria, com baixa qualidade. Pergunto aqui se alguém se lembra do último curso que o Ministério da Educação fechou por má-avaliação, por uma deficiência de formação? Então, Exame da Ordem hoje é uma forma de proteger a sociedade. O advogado já sai do exame com a carteira, podendo sustentar no Supremo, podendo cuidar da separação de alguém, das verbas trabalhistas de uma vida, e precisamos ter um selo de qualidade, inclusive, para proteger esse profissional que entra no mercado.
O senhor acredita que, com tudo o que aconteceu com esse episódio da Vaza-Jato, o ministro Moro ainda tem legitimidade para ser nomeado ministro do Supremo?
Por enquanto, sim. Ele (Moro) foi um juiz popular, muita gente gosta dele, tem uma carreira. Agora, acho que ele vai ter muita resistência por conta desse episódio de quebra de imparcialidade. A imparcialidade está na Declaração Universal dos Direitos Humanos, todo mundo tem direito a um julgamento imparcial. Acho que isso pesará contra ele. Eu o acho, hoje, muito mais um político do que um quadro jurídico.
Raquel Dodge prorrogou por um ano a equipe da Lava-Jato. O senhor acha que, devido à repercussão desse episódio o procurador Deltan Dallagnol deveria ser afastado?
Aí, não sou eu. O Conselho Federal da Ordem recomendou, no primeiro dia dos acontecimentos, que os dois se afastassem espontaneamente para responder às dúvidas que a sociedade tinha. Sinceramente, eles deveriam ter nos ouvido. Se tivessem feito isso naquele dia, não estariam sob ataque, como estão hoje. O problema é a confusão de seus cargos (de Dallagnol e Moro), pois qualquer cidadão pode sofrer acusações, ainda mais nos tempos de hoje. O problema é que, hoje, há uma dúvida sobre a conduta do ministro Moro e da sua, digamos, imparcialidade dentro da PF, sob seu direto controle. Há material todo dia, da imprensa, falando em operações, em tentativas de tirar o foco da questão dos vazamentos, a questão da ligação para as autoridades para descartar a prova. Se você parar para pensar, até agora, eu não tenho como comprovar a veracidade desses vazamentos. Com a apreensão desse material, pela Lei Carolina Dieckmann, eu, necessariamente, tenho de periciar esse material, porque, senão, não é crime o que os hackers de Araraquara cometeram. A perícia é que vai dar a fidelidade, mostrar que são fidedignos, e vai afastar de vez a tese do ‘pode ser, mas não lembro bem’, que é a que foi adotada. Então, nós sempre defendemos que, tanto para preservar a Lava-Jato quanto para preservar o papel do Ministério da Justiça, eles deveriam se afastar.
Isso contamina também o pacote anticrime?
Já contaminou. Basta conversar com qualquer deputado em Brasília para saber que já contaminou.
Esse episódio recoloca a OAB como uma das principais defensoras da democracia?
Eu não diria que recoloca, porque sempre foi, mas o Ruy Barbosa já dizia que são nestes momentos de autoritarismo que um advogado tem importância. Mas ele dizia que tem uma importância nos tribunais, eu não acho que isso nos tira desse papel jurídico. Nós não somos um partido político. Eu posso ter minhas paixões, as pessoas podem ter suas paixões, mas nós temos de ser o mais técnico possível, temos que ser técnicos, mas temos de ser firmes publicamente na defesa dessa agenda, porque a Constituição é a lei. Qual é o juramento que o advogado faz quando recebe a carteira? Proteger os direitos humanos, proteger as minorias. O presidente disse a frase: ‘Eu quero um PGR que entenda que o direito é das maiorias’. Gente, a Constituição existe… Não é isso. A PGR tem de ter um cuidado especial com as minorias, as maiorias já têm todas as suas vantagens. São as minorias que são protegidas pela carta constitucional, esse é o papel da Ordem. Isso eu não vou me eximir, e eu acho que ela sempre teve isso, mas, agora, temos uma agenda que é mais clara.
A Lava-Jato cometeu excessos?
Sim. Eu falo isso há muito tempo. Eu me preocupo sempre no Brasil quando determinada coisa vira um instrumento próprio, ganha vida própria. O Brasil tem ‘N’ histórias. A ditadura militar, no momento em que baixaram o AI 5, esse é célebre, o único que votou contra foi Pedro Aleixo, o vice-presidente civil. E ele disse ao marechal Costa e Silva: ‘Marechal, o problema não é o senhor, é o guarda da esquina’. Dito e feito. O que virou a partir dali? A máquina de repressão criou vida própria, financiamento próprio, e ela não quer parar de funcionar. A mesma coisa ocorreu, fui extremamente claro com isso. A Lava-Jato é uma operação importantíssima, a classe dominante brasileira tem de responder por sua impunidade histórica, mas ela não pode ter atores que são maiores do que ela, e tem de ter objetivos e métodos dentro da Constituição. Nós temos varas criminais em todo o Brasil, procuradores em todo o Brasil, possibilidades de operação em todo o Brasil, dentro da Constituição. Nesse processo, ela ganhou uma estratégia de marketing extremamente perversa, que é a prisão espetaculosa, o prejulgamento, a exposição do preso. A defesa está muito fragilizada, esse pêndulo naturalmente foi todo para um lado, e é como se a defesa fosse inimiga do país.
Fala-se muito dessa questão da falta de isenção da Lava-Jato, mas ministros conversam muito com advogados, têm relações muito próximas. Existe isenção no Supremo?
Se um ministro for pego tratando como foi feito entre Moro e o Ministério Público, o ministro já estava afastado, e o advogado já tinha perdido a carteira. Combinando resultado de processos, dizendo quando determinada coisa deveria ser apresentada? A verdade é que as pessoas passaram a fazer um cálculo de que os fins justificam o meio. Eu até acho que um cidadão sofrido, frustrado, tem o direito de fazer esse cálculo, ele não se formou em direito. Mas nós, que temos a salvaguarda do direito, entendemos que o Estado não pode ser um instrumento de vingança.
O senhor acha que o ex-presidente Lula, pelo que representa, por ter popularidade, deve ter um tratamento diferente?
Não. Hoje, eu entendo que ele tem de ter sala de Estado-maior, ele e qualquer outro ex-presidente, por uma questão de segurança. Óbvio que está hoje submetido à guarda do Estado. Há uma situação em relação a ele que você não vai me convencer de que é igual a de todo preso, há toda uma atenção. Acho que sala de Estado-maior a um presidente, por uma série de questões que já li (inclusive a lei que disciplina o regime, tanto que eles têm segurança do Estado), acho que essa sala é compatível com a dignidade do cargo, e com isso, aliás, penso igual a Sérgio Moro. O Moro pensa exatamente o que eu penso, e acho que ele está correto nesse aspecto.
O senhor acha que a democracia corre risco?
Democracia, no Brasil, é uma planta que costuma morrer rapidamente. E morre assim se os democratas olharem para o lado, ela morre, e a gente nem notou. Na nossa história, há vários episódios parecidos. João Goulart pensava que o dispositivo militar dele era mais poderoso do que os dos golpistas. Posso dar várias histórias das nossas tentativas, ou de derrubada, ou que foram vitoriosas, que se deram em gabinetes. É da história do nosso país, não precisa de revoluções para isso. Então, assim, nós temos que, todos os dias, primar pela proteção dos institutos democráticos. Preocupa-me que exista uma agenda presidencial de afronta a esses institutos.
Isso acaba permitindo que as pessoas que acordavam com algum sentimento de rancor se influenciem?
Isso é o maior perigo. Para mudar uma lei, ele tem que mudar aqui no Congresso, que tem representantes de todos os pensamentos do Brasil. Mas, no Brasil, por conta da nossa lógica de poder, o presidente é uma imensidão. Essa agenda dele de falas gerou uma centralidade do personagem dele. E isso não precisa de alteração legal, isso é um comando simbólico, que contamina. Então, um país que já mata muitos da população LGBT se sente autorizado a matar. Um país que já desmata muito para plantar, se sente autorizado, sim. Tanto que a explosão de desmatamento se dá sem alteração legal.
O senhor falou que hoje teria idade para ser pai do seu pai. Qual a última memória que o senhor tem?
Não tenho nenhuma. A memória do meu pai eu construí do depoimento dos outros, por isso que ele é muito mais político do que pessoa, é muito mais uma memória política que eu tenho que zelar. Eu separei as duas coisas, fiz um exercício enorme de não me deixar levar pela raiva do filho, que óbvio que eu senti, é humano, e fiz um exercício de policiamento para não deixar a raiva suplantar e cegar. Foram semanas difíceis no ambiente familiar, porque aí tem filho, esse ambiente do país muito enfurecido, as redes sociais, as crianças. Eu tenho filhos adolescentes que transitam nesse ambiente, muita mentira.
O presidente o transformou em uma celebridade, o senhor é candidato?
Candidato a nada, cada dia menos. Sou candidato a cuidar do meu escritório e depois fazer um doutorado, que eu abandonei quando entrei na Ordem. Não tenho esse sentimento, meu sentimento agora é servir à Ordem em um momento extremamente difícil, é o Brasil. Não tenho planos a médio e longo prazos. Tem sido muito difícil.
Não ter planos quer dizer que o senhor está descartando?
Eu não criminalizo a política. Mas, sinceramente, não me vejo como candidato, mas posso contribuir, na esfera pública. A vida inteira eu contribuí, mas não me vejo como candidato. Fui muito frustrado quando candidato na juventude (em 2004, disputou um cargo de vereador). Aqui, eu encontrei um lugar em que faço política dentro do institucional, das coisas que eu entendo, dos assuntos que eu entendo.
Correio Braziliense